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O filme Assassinos da Lua das Flores estreou no dia 19 de Outubro e apanhou a segunda edição da Festa do Cinema de 2023, onde os bilhetes se encontravam a metade do preço e as salas de cinema lotadas como nunca vi. Este drama de crime no faroeste conta com a atuação de Leonardo DiCaprio, Robert De Niro e Lily Gladstone, e é inspirado no livro de David Grann com o mesmo nome.

Nos mais de 200 minutos de filme, a história que nos é dada a conhecer é a da exploração das terras índias da tribo Osage, entre os fins do século XIX e as primeiras décadas do século XX, quando nelas se descobrem grandes reservas de ouro preto, comumente conhecido por petróleo. A abundante posse deste recurso tornou os índios Osage uma das etnias mais ricas à face da terra, per capita falando, o que, como não podia deixar de ser, chamou a atenção aos lobos brancos que, uma vez provando do seu sangue, não saciavam a sua fome.

Sendo este o cenário base, toda a história se desenrola em torno dos correntes e institucionalmente suspeitos homicídios, e desaparecimentos dos membros Osage. Inicialmente, a ideia que nos é transmitida é a de uma inversão total da hierarquia de poderes tal como a conhecemos entre americanos e ameríndios, uma vez que o que se vê são os americanos brancos, pobres e trabalhadores a explorarem as terras índias para os índios, e não para proveito próprio. No entanto, esta tendência não podia continuar assim, entendem os seguidores devotos da ganância. Na tentativa “discreta” de desapossar os Osage dos seus títulos sobre as terras, todo um esquema é montado pelo Xerife de Osage County, William King Hale, interpretado por Robert De Niro, onde conta com a ajuda de vários, entre eles Ernest Burkhart, seu sobrinho, retornado da Primeira Guerra Mundial, na pessoa de DiCaprio.

O “pequeno genocídio” dá-se, como é habitual, não apenas na morte física dos Osage, traduzido para “povo das águas médias”, mas também na sua redução social. Leis que obrigam a presença de um guardião - subentenda-se, branco - para gerir as fortunas dos Osage, uma vez que estes são “incompetentes”, são uma das formas de redução social desta etnia em particular. De mão dada com o assassinato destas pessoas também ocorre a miscigenação, que se entende como uma mistura do “sangue branco” com o “sangue vermelho”, reduzindo a população de “sangue-puros”.

Ernest é “convidado” pelo seu tio a procurar casar-se com Mollie, interpretada por Lily Gladstone, uma Osage pura proveniente de uma família rica e com muitos headrights (títulos), para que estes entrem no círculo da sua própria família. Acontece que Ernest apaixona-se verdadeiramente pela Mollie, mas nem por isso deixa de seguir as ordens ou diretivas do seu tio.

Depois de apagarem quase que por completo a família de Mollie e alguns conhecidos seus, Mollie e o Conselho dos Osage decidem abrir uma investigação para tentar perceber quem está por detrás destes homicídios. Quase por ironia acontece que o maior implicado, ou melhor dito, o cabeça por detrás deste esquema mórbido, é o próprio Xerife, que também ele tem a sua rede de subcontratados e conhecidos.

Depois de Ernest injetar várias vezes a sua esposa com supostas doses de insulina para lhe tratar os diabetes (na verdade estava a “acalmá-la” lentamente para a sua morte), Mollie, com as poucas forças que lhe restam, decide fazer uma viagem final a Washington D.C. para pedir ajuda ao Governo Federal e ao Presidente Calvin Coolidge na investigação destes casos, de onde sucede que uma equipa de agentes federais põe pé em Osage County e começam a investigação, alguns até como infiltrados. O caso acaba por ser desvendado, acabando os dois, tio e sobrinho, presos e levados a tribunal. 

A razão particular pela qual gostei deste filme foi pelas inúmeras questões que me levantou do ponto de vista político. Afinal, é um relato com imensas implicações políticas. Estamos a falar dos Estados Unidos da década de 20, quando a regulação ainda era pouca e o “papão federal” ainda só estava na fase embrionária. O espetador certamente se irá questionar sobre o uso e abuso dos seguros de vida e doença, que William Hale maliciosamente usava para enriquecer à custa da vida dos seus amigos índios. O espetador, se partilhar da mesma humanidade comigo, questionar-se-á sobre o conceito de “sangue puro”. Que legitimidade tem uma comunidade em querer preservar a pureza do seu sangue? Isso existe sequer ou é apenas um fenómeno sociológico? E se essa comunidade acontecer ser a Alemanha nos anos 30? Qual o papel que a autoridade pública deve desempenhar nestas situações? Promover a miscigenação? Proibí-la? Não é da sua conta? E o casamento cujo único propósito é o desejo de usurpar a outra parte das suas posses? Deve ser permitido enquanto arma, sem nunca esquecer as assimetrias de poder, não só entre homem e mulher mas entre colonizador e colonizado? O aspirante a politólogo também se questionará sobre a dualidade de governos, entre o local e o supra-estadual (ou federal). Refletirá sobre os efeitos, vantagens e desvantagens da descentralização e centralização, da democracia direta nos Conselhos dos Osage, bem como na democracia representativa no Congresso Americano. Será obrigado a responder a dilemas como “faz sentido uma comunidade (ameríndios) que não reconhece a autoridade e legitimidade dos brancos sobre as suas terras pedir ajuda ao poder das mais altas instâncias, porque se vê incapaz de resolver os problemas ao nível local?”

Engane-se quem achar que este tipos de questões já não têm muita pertinência nos tempos de hoje. Vivemos em sociedades cada vez mais heterogéneas, numa dualidade entre a individualização do tecido social e a centralização do poder político. Mais tarde ou mais cedo, estas questões irão imperar, duma forma ou doutra.

A nível do conteúdo propriamente dito do filme, acho que valoriza bem a cultura Osage, nos seus ritos e na sua linguagem, e a importância que confere às cores e movimentos contrasta bem com a paralisia deambulante e cinzenta do operário ocidental.

Quanto às cenas finais que decorrem no tribunal, gostava que tivessem sido mais exploradas. Sinto que faltou no filme um clima de tribunal, revelações, troca de acusações. Foi subitamente cortado para passar a um futuro onde ouvimos o que do tribunal e das sentenças decorreu, décadas depois num programa de rádio. Acrescento ainda que esta fase do tribunal foi bastante acelerada, pelo que surgiam muitos nomes ao de cima (nomes ingleses ainda por cima), e tornava difícil a elaboração da teia do caso na mente do espetador, ainda para mais depois de estar durante mais de duas horas e meia atento ao filme, na tentativa de decifrar quem é quem e fez o quê.

Sem mais spoilers, porque sinto que já dei muitos, recomendo vivamente a visualização deste filme!**