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Para mim, novembro sempre foi o mês infeliz em que se espera, ansiosamente, pela chegada do Natal. Começava-se logo a encher de cruzinhas os catálogos que chegavam às minhas pequenas mãos, na esperança de se ter naves LEGO do Star Wars ou mais umas figuras de ação do Spider-Man. Porém, lá no fundo das páginas, havia sempre a oculta secção dos jogos para as consolas onde a perdição era demasiada para uma criança com uma Wii. Eram tempos em que se passavam tardes inteiras a jogar Mario Kart e o FIFA da altura, ao mesmo tempo que se sonhava com a surpresa e o milagre que acontecia naquela noite especial.

Hodiernamente, novembro já não tem nada que o aproxime daquela aura, dando, agora, uma enorme sensação de saudade por aqueles tempos. Já não tenho catálogos de brinquedos para escrevinhar, tardes para serem ocupadas por extensas sessões de jogos ou a intensa e ávida crença na personagem do Pai Natal. Cresceu-se e a nostalgia assumiu-se como o fruto proibido para se poder reviver ou tocar suavemente no tão apetecível passado.

Nas bandas que ouço nunca encontrei esta sensação nostálgica expressa tão fortemente nas letras ou melodias que as compõem. Apenas me limito a refugiar em músicas que me lembram certos momentos específicos, desde as viagens no carro com os pais às bandas sonoras dos filmes da infância. No entanto, foi o último álbum dos Men I Trust que me encontrou e que, para grande surpresa minha, me fez sentir nostálgico sem nunca o ter ouvido antes.

O «Untourable Album (2021)» apareceu debaixo da árvore na calorosa manhã de 21 de agosto de 2021, embrulhado num indie pop altamente saudosista. O trio formado por Emma Proulx (voz e guitarra), Jessy Caron (guitarra e baixo) e Dragos Chiriac (teclas) procurou, desta vez, falar sobre memórias de criança, romances adolescentes e amarguras da vida adulta. Ainda assim, o método de conceção que havia resultado tão bem no «Oncle Jazz (2019)» manteve-se cristalinamente intacto para este 4º projeto independente.

A maneira como escrevem as suas letras foi sempre a mesma: “embelezar a realidade ao invés de a evitar”. Para tal ser concretizável, a sua passagem da mensagem é mais direta e concisa, não havendo espaço para a criação de falsos mistérios ou romantismos. Já a produção e as jam sessions acontecem numa pequena vila com pouco mais de 1000 pessoas, situada entre Montreal e o Québec. O ingrediente especial é mesmo o ambiente bucólico, pacato e isolado do countryside canadiano que eleva a banda a uma densa e, ao mesmo tempo, simplória mistificação instrumental.

A sublime música introdutória do álbum (Organon) acaba por ser uma boa rampa de lançamento para os temas que explora, sendo o primeiro e provavelmente o mais importante, a infância. O som dos sintetizadores inundados de reverb parecem transcender-nos para uma outra dimensão. Eis que o soar das baquetas nas peles nos acorda e dá início a uma espécie de oração por um regresso ao sítio onde crescemos.

De facto, é difícil para um português traduzir a palavra “home”, pelo menos quando se quer também referir o sentimento que esta provoca em nós. Tem muito de acolhedor e reconfortante, mas também de familiar e intimista; algo que a palavra “casa” não consegue expressar tão aprofundadamente. Há uma paz muito própria no regresso àquele sítio que nos viu crescer (When I smell sweet hay / Peace of mind comes / Distant land I’m from), mas também muito trágica ao crescermos.

Na impossibilidade de se reviver ou recriar essa sensação numa casa, parte-se numa procura por essa vida mais apetecível. Mesmo quando não se tenha muito por onde começar, como lembra a silente 5am Waltz (uma música antiga de um dos membros da banda), há sempre uma procura em o reavivar. Por sua vez, a Tree Among Shrubs projeta exatamente o que significa viver sem ter esse sentimento de casa presente, pelo menos no seu aspeto físico e não espiritual.

Parece haver um stress acrescido quando passamos para a vida adulta, já que deixamos de poder esconder-nos atrás da saia da mãe quando algo de que não se gosta acontece. Face a esta necessidade de encontrarmos uma nova “home”, encontramos novas pessoas e, à medida que amizades progridem e relações se formam, apercebemo-nos que a casa não é só um espaço, podendo ter a forma de alguém. A partir das palavras “But I see a tree that’s standing high among the shrubs / (…) The only one that I’ll need”, a banda indica isso mesmo, dando sempre um teor esperançoso nas notas e voz altamente apaziguadoras.

Apesar disso, a banda também não esquece a singularidade presente nas experiências da adolescência, nomeadamente as implicações e complexidades dos amores. A partir da relaxante Always Lone, há um relato de como estas paixões e heartbreaks podem levar a que as pessoas sejam mais frias ou distantes (“I’d rather be the one who got fooled / Than to have my heart cooled”). Todavia, estes preferem manter a compaixão para com outros a isso, ainda que possa resultar em tragédias mais que o que é suposto (“I always care /Always lone”).

Porém, assim como podemos sorrir um pouco com o uso do famoso lick na Lifelong Song, também podemos criar uma certa empatia com as tristonhas personagens que a Sugar e a Before Dawn nos apresentam. Não havendo espaço para uma saída ligeira, eficiente e indolor de um relacionamento que terminou, remetemo-nos para um pesado, cruciante e inevitável aceitar do status quo que se formou.

Na Sugar, conhecemos um casal que possui uma diferença considerável nas suas maturidades. Embora o tom menos sério e extremamente dançável seja o ponto predominante na música, não podemos deixar de sentir pena da “Sugar cane” que tanto sofre com o seu amado. Já na Before Dawn, ouvimos, desde o início, uma chuva de fundo que parece bater no vidro de uma janela, enquanto olhamos do escuro do nosso quarto. Não se aceita que alguém que se ama seja capaz de amar alguém que não nós, mas aceita-se a beleza da melancolia que a paisagem lá de fora parece abraçar tão fortemente quanto as notas soturnas desta faixa nos abraçam.

Nestes momentos mais deprimentes, procuram-se memórias mais felizes de se recordarem e, geralmente, somos cativados por caixas de brinquedos e registos de cassetes adormecidos no pó do sótão. Com a Oh Dove e a Sorbitol viajamos até às brincadeiras nos recreios que resultam em joelhos sangrentos e ao sabor das vitaminas e remédios que se tomam forçosamente. São momentos que, na altura, até poderiam ser dolorosos e irritantes, mas que, agora, aludem à inocência das crianças.

Por outro lado, podemos também encontrar as consolas de jogo que marcaram a nossa infância e, na expectativa de ainda funcionarem, ouvirmos a balada sedutora da Serenade of Water uma vez mais. Não conseguindo por de parte a referência à banda sonora do «Legend of Zelda: Ocarina of Time», há uma clara chamada de atenção ao princípio pelo qual comecei este artigo: a nostalgia na música vem, normalmente, de músicas que se ouvem em certos momentos da vida. Quanto a este caso concreto, parece ter sido o som de fundo nas margens do rio Zora que preenchia as tardes.

No entanto, há que não esquecer a dor que tudo isso pode causar na pessoa. Por exemplo, o regresso ao quarto que marcou os nossos sonos cor de rosa e despertares energéticos pode não ser tão feliz como dantes. Ao som do entoar das badaladas da Ante Meridiam, conclui-se que apesar de sermos a mesma pessoa que ali viveu, algo mudou drasticamente (“And I’m breathing / Lost in time / I’m fine / And I’m feeling / And I’m bleeding”).

Ainda nesse doloroso regresso ao passado, talvez a música mais deprimente seja mesmo a nota final deste álbum. O seu nome Beluga deriva do animal aquático que, como os Men I Trust o haviam dito num Q&A, é o seu preferido. Embora não seja causa para tanto transtorno, a melodia é incrivelmente taciturna e não há qualquer registo vocal que a acompanha. Somos deixados a pensar como, nos tempos do jardim de infância, o animal favorito seria algo bastante importante para nós. Acaba por ser triste pensar que já ninguém coloca questões destas e que a inocência que marcava uma característica tão pessoal quanto aquela se diluiu e foi substituída por outros tormentos.

Bom, confesso que a filosofia por trás deste projeto da banda canadiana possa ter sido exacerbada pela minha parte. No fim de contas, são apenas músicas onde os 3 artistas que as compõem sentiram necessidade de fazer ou partilhar com o seu público. A mensagem é bastante clara e concisa: “There’s no place like home” (não há lugar como a casa) e, quer se queira quer não, ouvirem-se relatos e histórias tão próximas da nossa realidade quanto estas, acaba por ser demasiado duro para os ouvintes mais sensíveis.

A meu ver, o Untourable Album faz por ajudar nessas cicatrizes que se vão abrindo aquando de um olhar para trás no tempo.  Aliás, Fernando Pessoa também já o havia descrito de forma exímia: “A criança que fui chora na estrada. / (…) Mas hoje, vendo que o que sou é nada, / Quero ir buscar quem fui onde ficou”. Enfim, possivelmente, o cúmulo da vida adulta é esta tentativa ridícula de se viver o que foi vivido em criança. Portanto, mesmo sabendo que esse exercício é desaconselhado, acaba-se por se fazer de tudo para nos aproximarmos da felicidade ansiosa em fazer a carta ao Pai Natal de um miúdo, mesmo faltando mais de um mês.