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Tal como a pandemia da virose covideira, a guerra na Ucrânia já perdia atenção mediática depois de quase um ano e meio a servir a mesma dose de “informação”. Na felicidade dos grandes mass-media troca-se o disco no dia 7 de Outubro de 2023 quando Israel sofre um ataque inesperado e imotivado por parte do Hamas, organização política e militar palestiniana, islâmica sunita.

Digo imotivado porque, de facto, a ocupação expansionista, belicista, politicamente promovida e assegurada, racistamente motivada e levada a cabo das terras da Palestina; a extorsão “à cara podre” das casas dos palestinianos, acompanhada por campanhas de turismo e de um certo “real-estatismo” que promovem o desalojamento forçado das populações árabes das suas casas; o controlo de todos os recursos vitais ao funcionamento normal de uma aglomeração de gente que queira ser uma sociedade, nomeadamente o gás, eletricidade e água, e a sua distribuição partindo de um critério de “benevolência” e não de um critério de “direito”; a constante vigilância de todo o movimento físico e digital dos palestinianos, dentro e “fora” dos seus territórios minimamente reconhecidos, acompanhada por um sistema de videovigilância permanente e sistemas de checkpoints e barreiras a cada meio-passo dado, que mais faz lembrar um escape-room do que um aeroporto (nem São Pedro é tão rigoroso com quem dá entrada nas portas do céu); o encarceramento e aprisionamento das crianças que ousam atirar pedras aos tanques de um dos vinte exércitos mais fortes deste mundo, o seu “julgamento” que mais não o é do que uma sentença ao mau trato e à “reeducação” de que o gesto adequado para com o opressor é o de agradecimento e nunca o de retaliação; o constante bombardeamento que serve de relógio para quem o Sol já morreu e não se vê entre as nuvens de pó dos prédios que caem como peças de dominó dia após dia, para quem o som das ondas que batem na costa revivem o som das bombas caídas do céu e para quem o a escuridão da noite não representa descanso mas terror, e uma ideia do ambiente por baixo dos escombros; o ataque recorrente a mesquitas e a património cultural, como o interrompimento da continuidade histórica de toda uma comunidade que se manifesta, com a pouca voz que lhe resta, através de murais que também eles já não resistem muito ao tremor da chuva de AGM-142s; o canto elevado a hino que ultrapassa a letra do Hatikvah e lhe acrescenta o desejo da “morte aos árabes”, “não haverão mais escolas em Gaza porque não haverão crianças que as frequentem” ou mesmo “vamos arder as vossas aldeias”; o assassinato propositado de jornalistas, crianças, velhos, manifestantes e resistência, covardemente à distância de uma bala de sniper, em que cada corpo que cai no próprio sangue é um tracinho vertical ou diagonal no killcount do atirador especializado; o apagar por completo dos registros civis de linhas de sangue mais antigas que o próprio estado de Israel, de famílias árabes extensas por natureza, o que certamente dificultaria a sua extinção; o incendiar das oliveiras, símbolo secular palestiniano, na tentativa (presumo) de evitar que os terroristas do Hamas se escondam nas suas folhas ou criem túneis nas suas raízes; o abandono e traição da irmandade árabe que cedeu ao politicamente conveniente em estabelecer relações diplomáticas com o inimigo; os mais de 70 anos de uma repetição constante e cada vez mais agravada do todo referido acima NÃO CONSTITUI, DE MODO ALGUM, RAZÃO PLAUSÍVEL para a resposta do Hamas no dia 7 de Outubro de 2023 - diz-nos o Ocidente.

Aliás, o Ocidente não entende o ataque do 7 de Outubro como uma resposta, porque uma resposta implica antecedentes, e não há antecedentes por parte de Israel. A história de Israel começa no mês passado (quando lhes convém), mas também começa há mais de dois mil anos (quando lhes convém mais).

Para os curiosos pela etimologia, “Ocidente” deriva do latim “occidere” que, por sua vez, significa “matar”, razão pela qual se entende que o Sol nasce no Oriente e morre, ou eufemisticamente falando, põe-se no Ocidente. Se o Ocidente quer deixar de representar a morte que tanto tem vindo a interpretar, em especial no século passado, tem que se demarcar de discursos como “Se não existisse um Israel, os Estados Unidos da América teriam que inventar um” (Joe Biden) - obrigado Presidente Biden por nos relembrar que os Estados Unidos da América não hesitariam em fabricar, uma vez mais, um aparato genocida e colonialista.

Digo inesperado porque, de facto, Israel vivia confortavelmente na sua opressão e repressão constante do povo palestiniano e de qualquer tentativa de resistência que tentasse pôr em causa o sistema de apartheid e limpeza étnica. O facto de estarem equipados com o Mossad, uma das maiores e melhores agências de inteligência do mundo, capaz de interpretar árabe de modo a que um calendário com os dias da semana passasse a traduzir o nome de terroristas; capaz de saber dos túneis e antecâmaras subterrâneas do Hamas; capaz de interceptar escutas telefónicas de falantes de um árabe suspeito; capaz de saber todos os bens, serviços e pessoas que entram e saem da Faixa de Gaza (exceto cópias do “Mein Kampf”), uma vez que Israel tem esse controlo sobre o território que supostamente abandonou e não controla; surpreendeu o mundo quando esta mesma agência não conseguiu antever o ataque organizado do Hamas no dia 7 de Outubro. Certamente deve ter sido por Israel estar a passar pelo Sukkot. Isso ou então os membros do Hamas se organizaram por cartas ou pombos-correio. Doutro modo não consigo conceber como uma intervenção militar tão massiva possa ter passado despercebida, tanto pelo Mossad como pelo IDF. Recordo que os operacionais do Hamas usaram asas-delta motorizadas para entrar em Israel, voando a alturas superiores às que os helicópteros ucranianos têm que voar para passarem despercebidos pelos radares russos. Se eu sugasse a alma e esperança de um povo por mais de 70 anos, também não estaria à espera que um corpo debilitado fosse capaz de conduzir um ataque nessa escala.

O Conflito Israelo-Palestiniano

Esta expressão que ocupa espaço mediático tem um propósito muito claro: legitimar a conduta israelita no seu ato de ocupação. Não existe, na Palestina, um conflito direto e armado entre duas entidades, Israel e Palestina. O que existe é uma ocupação militar e política dos israelitas sobre os palestinianos, que cada vez mais parece uma limpeza étnica, à qual se assiste, periodicamente, a tentativas de resistência pacífica ou armada.

Israel e os palestinianos não estão em pé de igualdade, muito menos perto disso. A situação mais se assemelha com uma relação tóxica e narcisista onde a Palestina é violentamente agredida, numa constante, e onde, raramente, quando lhe é possível, solta um berro entre o soluçar do choro, pelo qual leva ainda mais forte.

Chamemos as coisas aquilo que elas são.

Crimes de Guerra? Qual guerra?

Do exercício legítimo de Israel em “se defender dos ataques terroristas do Hamas”, temos observado várias fontes noticiosas e individuais acusando Israel de cometer crimes de guerra, como o ataque deliberado a civis, a hospitais, escolas e campos de refugiados, a destruição de património cultural e histórico, a deslocação forçada ou deportação de civis, o uso de armas proibidas pela Convenção de Certas Armas Convencionais como o fósforo branco, um produto químico incendiário e corrosivo que só para ao atingir o osso, entre outras barbaridades.

Ao tentar perceber o Direito Internacional e a regulação da guerra, entendemos que não é necessária uma declaração formal de guerra para que um ato constitua um ato de guerra, apesar de o nome “crimes de guerra” parecer assim o sugerir. As Convenções de Genebra estabelecem que estes podem ocorrer em situações de Conflitos Armados Internacionais ou Conflitos Armados não Internacionais. Os primeiros referem-se a conflitos ou hostilidades entre dois ou mais estados, isto é, envolvem o uso de forças armadas entre entidades soberanas. Já os segundos referem-se a conflitos que ocorrem dentro das fronteiras de um único estado, e envolvem forças governamentais e grupos armados não-estatais (rebeldes ou milícias).

Ora, como podem calcular, a Faixa de Gaza não é nem um território soberano reconhecido, apesar de Israel considerar que a sua retirada em 2005 assim o determina, e portanto não o podemos classificar como um Conflito Armado Internacional, nem faz parte do território fronteiriço de Israel, pelo que também não é um Conflito Armado não Internacional. Em que ficamos?

Ficamos com a realidade crua dos factos. A Faixa de Gaza e a Cisjordânia são a prova viva e incontestável de que Israel é um estado de apartheid, de discriminação étnica e de terror. Israel, e os seus dirigentes (etnicamente europeus mas que comem de boa vontade a nobre mentira de que são “etnicamente israelitas”, seja o que isso for), não podem continuar impunes e com o apoio da sociedade civil ocidental. 

Um país que coagiu mais de 130 000 mulheres da Etiópia, judias porventura, a injeções de esterilização porque o racismo é tamanho que não se restringe às fronteiras do Canaã, mas que tem a lata orbital de se passar por perseguido e vítima, escondendo-se sempre que possível atrás da carta do Holocausto e do antissemitismo, não é digno de lágrimas de crocodilo do Ocidente, se é que o Ocidente quer deixar de ser etimologicamente ocidental.

Se Israel, o símbolo dos valores demoliberais no Médio Oriente, cuja bandeira de branding é a permissibilidade e reconhecimento dos homossexuais (apesar de que esses têm que se casar no Chipre porque em Israel os casamentos estão sujeitos a uma autoridade religiosa - estado secular, atenção! - que não reconhece casamentos homossexuais ou interreligiosos no território de Israel, apenas os efetuados fora), já age criminalmente há mais de 70 anos, sem estar num Estado de Guerra, imagine o que seriam reais crimes de guerra israelitas. Não precisa imaginar muito. A “Opção de Sansão” é a “política nuclear ambígua” de Israel, um país que alega não possuir arsenal nuclear, que se traduz na ameaça nuclear de qualquer estado ou entidade que ameace direta ou indiretamente a existência do Estado de Israel (e gostaria que lesse essa frase duas vezes).

Biblicamente, Sansão, reunido com os filisteus (palestinianos) num templo para prestar um sacrifício ao Deus Dagon, ora a Deus por forças e puxa dois dos pilares que sustentavam o templo, fazendo com que esse se desmoronasse sobre si e sobre os filisteus, que o mantiveram captivo durante algum tempo. Isto para dizer, o maior crime de guerra de Israel será, muito provavelmente, a destruição dos pilares que sustentam a ordem internacional e a vida assim como a conhecemos. Querem saber o que são crimes de guerra? Ousem declará-la.