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Marina Machete é a primeira mulher transgénero a vencer o concurso Miss Portugal. A jovem de 28 anos foi, no passado dia 5 de outubro, coroada Miss Portugal e vai representar o país no concurso Miss Universo 2023, que se irá realizar em novembro. Marina não só foi a primeira mulher transgénero a participar, como também foi a primeira a vencer. No entanto, tais conquistas são irrelevantes para a maioria dos portugueses, que consideram um desrespeito o facto de a vencedora de um concurso de beleza feminina não ter nascido naturalmente mulher. É evidente que se fosse uma mulher cisgénero não era necessário falar nem discutir sobre o assunto, mas como não é o caso, o caos instalou-se rapidamente pelo país e muitos garantem que o mundo como o conhecemos está a chegar ao fim e com ele todas as noções de liberdade. 

Diria que é óbvio que se o mundo estiver de facto à beira do colapso não foi a Marina nem a sua transição que o provocou. Na verdade, gostava de entender o porquê de os portugueses darem tanta atenção a um concurso de beleza, em especial à vencedora do mesmo, quando assistimos a uma crise económica e política dentro das nossas próprias fronteiras. Há inúmeros problemas em Portugal e pelo mundo fora, mas estamos todos demasiado ocupados a debater sobre a biologia da nova Miss.

A polémica acerca da participação de mulheres transgéneros em competições desportivas não é novidade. Evidentemente, uma pessoa que nasceu homem, mas que de momento se identifica como mulher não deve competir desportivamente contra mulheres cisgénero, pois isso é um claro exemplo de competitividade desigual. A sua constituição biológica concede-lhe vantagens, como a velocidade ou a força, e, portanto, é compreensível que seja discutida a melhor abordagem nesses casos. Agora, quando nos referimos a concursos e competições em que o foco é a beleza das mulheres e a proporcionalidade do corpo feminino, é incontestável que a existência de um cromossoma Y não traz grandes benefícios para as concorrentes, pelo contrário.  

É louvável que mesmo tendo todas as probabilidades contra si, inclusive o seu conteúdo genético, Marina Machete tenha sido capaz de ser coroada a mulher mais bonita de Portugal. A meu ver não se trata de batota, de políticas de esquerda, ou de uma necessidade de alcançar a supremacia por parte de certas minorias, como muitos afirmam; Marina venceu porque foi eleita, porque alguém achou que ela devia representar o país e, portanto, votou nela. Esta situação realça um traço muito típico dos portugueses: no momento em que devemos fazer uma decisão e votar, quer seja numa figura governamental, no representante de turma ou até mesmo num concurso de beleza, há sempre pelo menos um pequeno grupo de pessoas que se chega à frente e que faz essa decisão, independentemente do valor da mesma. Contudo, quando saem os resultados dessas eleições e a escolha deixa de estar presente numa folha de papel ou associada a um número de telemóvel, todos se queixam, ninguém entende como tal aconteceu, pois no fundo ‘’é impossível alguém ter votado nela(e), quem é que o faria?’’. Mas a realidade é que alguém fez, alguém sempre o faz. 

Neste caso não é diferente, ninguém quer ser representado pela Marina Machete, mas na hora de votar na Miss Portugal de 2023, a maioria daqueles que se sentem revoltados com a decisão final não votou numa das outras 16 candidatas à disposição. O que tem uma explicação simples: a maior parte das pessoas não consome este tipo de conteúdo. Para muitos, os concursos de beleza não têm um papel de destaque na lista de programas que gostam particularmente de assistir. Deste modo, não creio que seja compreensível o sentimento de revolta da população. A meu ver, é óbvio que se não acompanho determinado concurso e não concordo com o conceito, também não posso protestar quando o vencedor do mesmo vai contra as minhas ideologias ou conceções. 

Os concursos de beleza em Portugal caíram no esquecimento há alguns anos. No entanto, neste momento, são tema de notícias, artigos de opinião e de comentários na televisão. Miguel Sousa Tavares esteve no Jornal Nacional da TVI, no passado dia 26 de outubro, onde comentou sobre a premiação. Numa conversa descontraída com José Alberto de Carvalho, Sousa Tavares diz que não se casaria com a Miss e pergunta se o seu interlocutor o faria. 

Este diálogo, no seu todo, envolve várias questões interessantes. Para começar, o facto de ele tentar utilizar o casamento para denegrir uma mulher suficientemente confiante e consciente de si mesma, torna-se claro que usar o casamento como critério de avaliação de beleza de uma Miss só evidencia como este tipo de concursos é antiquado e rotula as mulheres de meros objetos ou figuras casadoiras. Por outro lado, a autoconfiança de um homem de 71 anos ao dizer que não casava com uma mulher muito mais nova e que em momento algum revelou qualquer tipo de interesse pelo mesmo: o facto de Miguel Sousa Tavares querer casar ou não com uma mulher não a torna mais merecedora ou menos de direitos e respeito pelos demais. E por fim, o facto de ele ter afirmado que a Marina não devia ter ganho porque a sua beleza e os seus traços femininos foram fabricados por cirurgiões e pelo avanço científico. A realidade é que este tipo de concursos não está à procura de uma noção real de mulher, aquilo que se avalia é um estereótipo da beleza feminina e não os cromossomas das concorrentes ou qual o seu aspeto antes da sua inscrição.

Dias depois, na emissão de dia 30 de outubro, José Alberto de Carvalho pediu desculpa pelo seu comportamento, dizendo que ‘’o sofrimento ou a mágoa de qualquer pessoa deve ser evitado em todas as circunstâncias’’ e que ‘’independentemente das escolhas que cada um faz na sua vida, (…) todas as pessoas devem procurar a sua felicidade’’. Este pedido de desculpas adensou os debates sobre a vitória de Marina Machete e levantou diversas controvérsias. Agora o problema não é só uma mulher transgénero representar Portugal num concurso de beleza, mas também o facto de aparentemente não ser moralmente correto criticá-la em plena televisão nacional. Os portugueses, neste momento, não se preocupam apenas com a constituição genética da nova Miss, agora também têm medo de perder a sua liberdade de expressão, o que apenas  se tornou uma preocupação real na última segunda-feira de outubro. Ao observarem a ascensão de políticas extremistas, de suspeitas de corrupção e de problemas sócio-económicos, a maioria das pessoas não receava perder os seus direitos básicos, mas quando um jornalista pede desculpa por cometer um ‘’crime de ódio’’ já se acha que a democracia está ameaçada e que a censura está prestes a voltar para assombrar a população. 

Mais uma vez reitero, Marina não é a causa das calamidades que vemos no país e no mundo, não é ela nem a sua vitória que vão eliminar a nossa liberdade de expressão. Esta pode estar de facto ameaçada, mas não é por concursos de belezas e pelas suas vencedoras. O facto de José Alberto de Carvalho ter pedido desculpa não representa uma ameaça aos nossos direitos e liberdades, não é uma prova real de que a nossa democracia está em perigo, apenas mostra que devemos ter em consideração as outras pessoas e respeitá-las, que não devemos ser preconceituosos nos meios de comunicação e esperar que não haja consequências. Sousa Tavares criticou uma mulher real, não uma figura metafórica ou uma personagem fictícia, criticou alguém que tal como os outros portugueses assustados também tem direito à liberdade de escolha. 

No fundo, Miguel Sousa Tavares não está interessado no concurso em si, como a maior parte de nós, aliás. Se Marina não fosse transgénero, era só mais uma mulher com uma coroa brilhante e um vestido bonito a pedir a paz no mundo e a apoiar inúmeras causas sociais. A verdade é que ninguém ia dar importância ao que ela tinha para dizer sobre o meio ambiente ou sobre a inclusão social, do mesmo modo que nunca se deu nem nunca se vai dar, independentemente da biologia das vencedoras. O foco dos concursos não é a opinião que as concorrentes têm sobre os problemas universais.Sousa Tavares não quer saber a opinião da Miss acerca do Orçamento de Estado, por exemplo, nem os portugueses querem saber qual as propostas dela para mudar o país e o mundo. 

Os concursos de beleza, como a Miss Portugal e a Miss Universo, escolhem uma mulher que consegue decorar um discurso eloquente sobre o porquê de protegermos o meio ambiente e os pobres dos animais, que sabe sorrir no momento certo e que tem as medidas corporais proporcionais entre si, assim como, uma altura superior a 1,60m. Desta forma, Marina Machete preenche todos os requisitos uma vez que um cromossoma Y não compromete a sua capacidade de memória nem o seu sorriso estratégico.