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A crise política em que Espanha se encontra mergulhada possui raízes remotas e a compreensão dos seus contornos implica que rebobinemos a fita do tempo até maio, embora a turbulência política se faça sentir no país desde os idos de 2016. O calendário eleitoral espanhol apontava para maio a realização de eleições regionais e autonómicas, momento decisivo para o futuro coletivo do país, dada a fragilidade do executivo liderado por Pedro Sánchez e o vigor da oposição de Alberto Feijóo, que enfrentaria o seu primeiro teste eleitoral desde que assumiu as rédeas do Partido Popular (PP).

Para Sánchez estas seriam um barómetro, cujos resultados possuiriam leituras e consequências no plano nacional. No rescaldo das eleições os resultados não deixaram margem para dúvidas: o PSOE sofreu uma derrota em toda a linha e o recém eleito Alberto Feijóo colocou o PP no trilho das vitórias. Sem que tempo suficiente tivesse passado para que os confettis fossem lançados, o balão de oxigénio que a vitória lhe concedeu pouco tardou a esvaziar-se pois,o presidente do governo, e presumivelmente futuro, mudou as regras do jogo e antecipou as eleições gerais para julho, cinco meses antes da data prevista. Decisão arriscada ou meramente oportunista? A mudança é por natureza imprevisível. Pedro Sánchez faz parte da paisagem política espanhola desde 1998 e a sua ascensão ao mais prestigiado cargo da política espanhola tornou-o numa figura magistral da vida política nacional, que nada tinha a temer com uma deslocação às urnas. O líder popular em vésperas de eleições apelou a uma maioria absoluta e, com um ímpeto reformista, assumiu de forma inequívoca os eixos nos quais incidiria a sua ação: aspirava restaurar a confiança nas instituições e não ser somente um mero promotor da alternância democrática, mas uma alternativa que configurasse um turning-point face à estratégia vigente.

As eleições de 23 de julho culminaram num impasse: o PP foi o partido mais votado, ocupando 136 dos 350 assentos; o PSOE obteve 122 assentos; o VOX caiu para 33 deputados, o SUMAR conquistou 31 assentos; os partidos independentistas obtiveram a mais baixa votação das últimas décadas.
As eleições não revelaram o nome do próximo Presidente do Governo mas tornaram discerníveis as linhas que definirão a arquitetura institucional do próximo governo. O PSOE, partido com um percurso político notável no que à defesa da democracia liberal concerne, foi criado nas proximidades da Puerta del Sol na capital madrileña nos idos de 1879. As sondagens apontavam que este não voltaria a ver a luz do dia através das janelas do Palácio de la Moncloa, contudo, mais uma vez, se confirmou que as previsões têm vida curta.

Sánchez primou pela ousadia e, uma decisão que podia ser politicamente fatal, não o foi - evidenciando a natureza perseverante do socialista, ideia plasmada nas páginas do livro de sua autoria intitulado “Manual de Resistência”. A habilidade negocial de Sánchez é inequivocamente uma das suas maiores virtudes, embora esteja ao serviço de uma persona política com um ego inflamado e uma latente incapacidade de aceitar uma derrota, mesmo que isso tenha o preço do ADN democrático do partido.

Sob a liderança de Pedro Sánchez, Espanha resistiu à maré de direita imoderada que assolou o velho continente, não só conquistou assentos no Congresso como agrilhoou a democracia, estreitando as hipóteses à direita de constituição de uma alternativa. O notável The Economist descreve-o como uma “onda ibérica de moderação”, fenómeno resultado de uma vicissitude do contexto político dos nuestros hermanos: a questão da independência catalã.

A memória viva da ditadura de extrema-direita tem sido inibidora da integração em coligações de partidos que se revêem numa matriz franquista – exceção ibérica que, se não for alterada a estratégia, não tardará em ser invertida. A relação entre o VOX e os movimentos separatistas é simbiótica: quanto mais inflamada a pulsão independentista, maior o sucesso da extrema-direita nas urnas.

O processo de investidura tem sido revelador dos princípios que norteiam a liderança do executivo espanhol: pauta a sua ação por mero oportunismo e tem demonstrado ser órfão de sentido de responsabilidade, subordinou o futuro da democracia espanhola à sua ambição pessoal e àqueles que não têm por ela um pingo de apreço. Nesta altura do campeonato, subestimar o faro político de Sanchez é pouco auspicioso. De modo a que mais de ½ do puzzle fique completo, a coligação terá de contar com as seguintes peças: SUMAR, ERC (Esquerda Republicana da Catalunha), PNV (Partido Nacionalista Basco), Bildu (herdeiro institucional da ETA), , JUNTS (partido cujo líder se encontra foragido à justiça) e o Bloco Nacionalista Galego (BNG). Cautela, discrição e agilidade são a trindade de atributos que têm orientado o processo de negociação.

É de suma importância conhecer a natureza de alguns parceiros que integrarão a coligação urdida por Sánchez. O SUMAR, parceiro preferencial do PSOE, é uma plataforma de esquerda liderada por Yolanda Díaz que integrou o precedente executivo de Sánchez. Partido que, tamanho o apreço que possui pelo Estado de Direito, se encontra concomitantemente com Sánchez à procura de uma fórmula que permita a realização de uma amnistia, contornando o quadro constitucional. O dilema surge quando ao puzzle negocial se juntam forças políticas independentistas. É no mínimo paradoxal que a estabilidade do executivo espanhol esteja nas mãos da mais instável região – a Catalunha.

O Junts per Catalunya representa uma peça imprescindível do puzzle governativo e consequentemente na viabilização de um novo executivo à esquerda. As suas exigências possuem um ímpeto desafiador: amnistia a condenados e acusados pela justiça pela tentativa de autodeterminação da Catalunha de 2017 e realização de um referendo visando a independência da região. Importa não esquecer que no mandato anterior Sánchez perdoou nove desses líderes e reformou o código penal para eliminar o crime de sedição.

A realização de concessões inadmissíveis a setores independentistas colocam inexoravelmente em causa a essência do Estado de Direito e a integridade territorial espanhola. Os conflitos internos são cicatrizes de um passado longínquo no tempo mas não na memória. Uma coligação que nasce da realização de cedências como as exigidas por partidos como o Junts, dinamitará o não vasto espírito de concórdia e abrirá caminho para a emersão de uma tensão social sem precedentes.

Desde o florescimento da democracia que em Portugal e Espanha foi respeitada a prática de o partido mais votado constituir governo, mesmo em circunstâncias de não conquista de maioria absoluta, José María Aznar e António Guterres são exemplos disso. Em Portugal a tradição foi revogada em 2015 momento em que Pedro Passos Coelho, triunfante nas urnas viu-lhe negada a posse das chaves de São Bento, após “el mestre do contorcionismo político” António Costa, aquando de uma forte pulsão pela conquista de poder, ter negociado com os partidos à sua esquerda. Em Portugal a coligação ficou conhecida como “Geringonça” , no outro lado da fronteira assumiu o nome de “coligação Frankenstein” – vocábulo concebido por Alfredo Rubalcaba, figura de proa do PSOE e líder entre 2011 e 2014. Não se vê sombra de arrependimento ou de ato de contrição no horizonte de ação, o que me conduz a uma questão: por ainda paira o respeito pelos valores de um Estado de Direito numa democracia com mais de quatro décadas de existência?

De Sánchez nem uma palavra se ouviu a essa respeito, contrariamente aos milhares de espanhóis que, a 24 de setembro em Madrid e a 8 de outubro em Barcelona, saíram à rua em protesto contra a presumível amnistia e independência da Catalunha, demonstrando terem mais sentido de Estado do que aquele que aspira definir o rumo do país.

Não apenas à direita as críticas se multiplicaram, figuras históricas do PSOE, como Felipe González, fazem parte do coro de vozes que condenaram o curso das ações do atual líder. González demonstrou o seu desagrado quanto à realização de uma amnistia, alegando que esta não só é inconstitucional, como “constitui um desrespeito perante a o sistema nascido a 1978” (data que faz alusão à transição democrática e data em que a Constituição foi promulgada).

À imagem e semelhança do rei Sol, Sánchez, castigou críticos internos e expulsou Nicolás Redondo, antigo secretário-geral desta força política no País Basco e um vigoroso oponente da ETA, por considerar que a cedência face aos independentistas configura um “grave atentado à essência democrática do país”. A cultura de respeitinho apoderou-se do PSOE e tornou-se parte integrante do guia de conduta sanchista.

A prossecução de um trilho político de ziguezagues e de desvirtuação da herança democrática, estratégia seguida pelo atual primeiro-ministro, não pode ser repetida por quem a ele se opõe e dele se pretende distanciar.
O número de votos obtidos pelo PP ficou inquestionavelmente aquém do desejado e a “tímida vitória” configura per si um desafio para o espaço político da direita – como obter os votos necessários para garantir a posse das chaves do Palácio de la Moncloa?

Engana-se quem coloca no aspirante a primeiro-ministro Alberto Feijóo uma aura de candidez. A relutância de demarcação inicial face ao VOX, aliada a uma ausência incompreensível no debate após uma prestação notável no frente a frente configuram erros decisivos que contribuíram para a não obtenção dos votos necessários para governação sem amarras.

O silêncio prudente deu azo à especulação face à inclusão do VOX no puzzle governativo, posição de profunda conveniência para o PSOE, que o instrumentalizou e desencorajou o voto no PP. A estratégia de ascensão ao poder foi delineada em torno da sobreposição da direita moderada ao antigo regime, auto atribuindo ao PSOE a legitimidade exclusiva de representação da vontade do povo espanhol - receita exímia para a perpetuação no poder.

O PP teria possuído mais sucesso caso se tivesse distanciado inequivocamente da derecha sin complejos, que nos idos de 2019 a ela se dirigia enquanto derechita cobarde. Quem à segunda, quarta e sexta estabelece entendimentos com o VOX visando a governação de comunidades autónomas e municípios não pode à terça e quinta afirmar a sua autonomia estratégica face ao partido liderado por Santiago Abascal.

Cumprindo a tradição espanhola, o rei Filipe VI indicou o líder do PP, partido mais votado, para candidato a primeiro-ministro. Para surpresa de absolutamente nenhuma alma viva a investidura fracassou, Feijóo ficou à distância de quatro votos da eleição. Na sequência do insucesso, Sánchez foi nomeado para a investidura.

O Congresso dos Deputados tem até 27 de novembro para eleger um presidente do Governo, sob pena de repetição das eleições em janeiro. Até lá espera-nos um mês de cedências, negociações e acima de tudo de um profundo contorcionismo político.

As ideias apresentadas neste artigo não se circunscrevem às fronteiras que delimitam Espanha. Este artigo aborda o eros do poder, a subversão de regras do jogo democrático e torna cristalino o maior desafio que as democracias liberais enfrentam: não sacrificar a democracia aos ímpetos tentadores da manutenção no poder.

O Partido Socialista Operário Espanhol está pronto para assumir o governo. Mesmo que para isso seja necessário deixar de ser socialista, operário ou espanhol < é a descrição exímia do contexto espanhol. Pedro Sanchez não é fruto de um acaso, é o rosto de uma tendência: simboliza o oportunismo que o regime viu nascer, regou e que agora deu frutos.

A lei do mais forte cedeu perante a lei do vale tudo, perdeu a democracia cuja vigência a tantos custou e cujo valor Sanchez há muito olvidou.