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A guerra que a 24 de fevereiro regressou ao velho continente trouxe poucos aspetos benéficos à arena internacional, porém a agregadora do bloco inegável, contrariamente alinhado a Moscovo que perde vitalidade a cada derrota no terreno.

Embora geograficamente próxima, a ameaça vinda do Kremlin parecia estar longe. O dia 24 de fevereiro configura um turning-point na arquitetura de segurança mundial, que se crê hoje ser irreversível.

O Pacto de Varsóvia, organização que visava o reforço dos laços entre as nações participantes - alinhadas com o bloco soviético - e que, similarmente à NATO, assenta na cooperação e assistência mútua em caso de conflito, foi dissolvido aquando do fim da Guerra Fria no ano de 1991.


Não apenas a queda do Muro de Berlim e consequente espiral de declínio da Federação Russa motivaram a sua extinção, a organização perdeu o seu capital atrativo contrariamente ao que sucedia com a aliança que esta se propunha a confrontar.

Contrariamente, a NATO, que tantas vezes viu a sua existência questionada e que até à morte foi condenada, ressuscitou das cinzas. A aliança transatlântica revela hoje mais do que nunca a sua importância. Através da sua flexibilidade e adaptação da sua estratégia global aos desafios inerentes ao século XXI, viu o seu papel reforçado.

O conceito estratégico, aprovado há nove meses, espelha a profunda transformação na forma como os diferentes polos de poder são percecionados. A Rússia e a China são hoje ameaças às quais a aliança deve prestar especial atenção: “a zona euro-atlântica não está em paz. A segurança euro-atlântica é minada pela concorrência estratégica e pela instabilidade generalizada”.

Volvidos mais de 70 anos da sua criação, continua a suscitar interesse e a comprovar a sua utilidade, razão pela qual muitos países continuam a manifestar interesse em integrar a organização. Os seus alargamentos são resultado do interesse de países e não de uma pretensão de democratização do mundo, narrativa difundida pelos corredores do Kremlin.

Os mais de 365 dias de guerra em solo ucraniano, marcados pelas atrocidades que há décadas não eram vistas no continente europeu, foram reveladores de dois aspetos:

  1. A paz por todos tomada como garantida num ápice se transforma em discórdia.
  2. A segurança no interior das fronteiras dos países só está garantida se existirem elementos de dissuasão que tornem a guerra um ato arrojado e improvável.

A Federação Russa, pela sua imprevisibilidade, representa uma ameaça direta à segurança dos países que com ela fazem fronteira, quer marítima quer terrestre, como os países bálticos, Finlândia e Suécia, bem como a todos aqueles que têm a ousadia de a ela não se alinhar.

Parte dos países europeus vêm a sua segurança assegurada pela pertença a organizações como a NATO; outros, como a Suíça, veem a sua segurança assegurada através da instauração de um sistema de serviço militar obrigatório que prepara os cidadãos para defender a nação em caso de necessidade; e, por fim, existem países que estão órfãos nem da primeira premissa nem da segunda. É no terceiro grupo que se encontra enquadrada a Finlândia, país que tal como a Suécia traçou uma trajetória de neutralidade a candidato à NATO.

O regresso da guerra à Europa acelerou o processo de consciencialização de suecos e finlandeses quanto à efetividade da ameaça russa e colocou a segurança, ausente no debate político e à qual se alocava uma irrisória parte do orçamento, no cerne das estratégias nacionais.

As divergências políticas internas existentes nos dois países foram deixadas de lado num momento definidor do futuro geopolítico dos países. As diferentes cores políticas dos parlamentos de Helsínquia e Estocolmo uniram-se em torno de uma decisão de profunda relevância e a 18 de maio de 2022, lado a lado formalizaram o pedido de adesão à NATO, abandonando a sua histórica tradição de neutralidade. Conscientes dos riscos da sua ação, consideram que na balança da ponderação os riscos decorrentes de uma inação superam os da audácia da decisão.

Globalmente os estados membros demonstraram total recetividade aos pedidos de adesão endereçados no mês de maio e, na voz do seu secretário geral Jean Stoltenberg, foi declarado “Trabalhamos com a Finlândia e a Suécia há muitos anos (…) reitero a disponibilidade de a aliança acolher a Suécia e a Finlândia”.

Verifica-se, no entanto, que a exceção comprova a regra: multiplicaram-se os consensos porém há casos de dissonância. A Hungria e Turquia encontram-se desalinhadas da doutrina de política externa transatlântica. Desde o momento em que publicamente foram declaradas intenções de adesão à NATO revelaram pouca animosidade com a ideia.


A Hungria, que hoje quer travar, ou pelo menos adiar, a entrada dos países mencionados previamente na organização, há pouco mais de duas décadas, após soltar as amarras da satelização soviética, juntou-se à organização, razão pela qual deveria, por obrigação moral, apoiar candidaturas de adesão.

Em parte era expectável esta postura húngara face ao pedido de adesão já que se encontra alinhado politicamente com a Rússia e tem estado em divergência com a doutrina de política externa Ocidental que condena o conflito. Viktor Orbán tem sido, desde os primórdios da invasão, um crítico das sanções económicas à Rússia e da difusão da ideia de que o regime de Putin é uma ameaça à segurança europeia.

Com um discurso ambíguo marcado por avanços e retrocessos, ora não se compromete, ora em declarações recentes afirma que “a entrada da Finlândia e da Suécia na NATO não colocam em perigo a segurança da Europa, nem da Hungria”.

A Hungria encaminhou-se a si mesma para uma encruzilhada cuja saída não será fácil: por um lado, o robustecimento de uma aliança que, embora não configure, é percecionada pelo Kremlin como uma ameaça, pode ser um tiro no pé nas relações entre Budapeste e Moscovo; paralelamente, constituir um entrave à entrada de dois estados candidatos não será vantajoso para o futuro das relações com as três dezenas de países.


As divergências entre Estocolmo e Ancara são remotas e agora mais do que nunca estas são visíveis. O país liderado por Recep Erdoğan possui um duplo olhar sobre o pedido de adesão e pretende lidar separadamente com os casos finlandês e sueco, dando luz verde ao primeiro e bloqueando a entrada do segundo.

A Turquia justifica a sua ação invocando o argumento de que a Suécia possui no seu território organizações terroristas que agem contra a Turquia, entre as quais a PKK, que defrontou a Turquia na emblemática Guerra Civil do Curdistão Iraquiano. Tal argumento está longe de ser aceite pela comunidade internacional que está convicta de que, através da assunção desta postura, a Turquia espera ocupar uma posição privilegiada e possuir capacidade de impor condições no processo de negociação.

A qualidade das democracias húngara e turca já viu melhores dias: dados da Freedom House de 2022 colocam a Hungria entre os regimes híbridos e a Turquia entre os regimes não livres. A Hungria, sob o executivo de Viktor Orbán, viu-se encaminhada para uma tipologia de regime no mínimo controversa, a democracia iliberal. Já Erdogan reforçou as derivas autoritárias do regime turco. A aproximação ao leste destes dois países europeus radicalizou as suas lideranças, o que justifica o seu declínio democrático.

Já Erdogan reforçou as derivas autoritárias do regime turco. A aproximação ao leste destes dois países europeus radicalizou as suas lideranças, o que justifica o seu declínio democrático.

A imperatividade do consenso no seio da NATO, que é positiva por cada decisão constituir verdadeiramente a expressão do desejo coletivo e não apenas das partes, é simultaneamente desvantajosa pois se pode revelar um entrave com consequências sérias em matéria de segurança.

É, para já, pouco prudente fazer previsões de longo prazo quanto à eventual “luz verde” de Ancara e Budapeste, porém é plausível ser dito que futuros desenvolvimentos na guerra estão intrinsecamente ligados ao futuro das lideranças húngara e turca. Parece hoje claro como a água que a vitória de uma das partes definirá a rota de aproximação a um dos lados: ao regime russo, liderado por Vladimir Putin, ou ao Ocidente.

A Turquia e a Hungria têm o futuro da geopolítica europeia e transatlântica nas suas mãos. Um passo em falso será suficiente para o despoletar de tensões entre as partes. O tempo não tardará a revelar se o impasse criado pelo eixo turco-magiar não os encaminhará a eles mesmo para uma encruzilhada geopolítica que será pouco auspiciosa para as respectivas lideranças.