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NOTA: o exercício que pretendo aqui realizar é apenas no âmbito filosófico/político e não científico-pedagógico.

Já me tinha debruçado anteriormente sobre o significado da política e qual a sua importância enquanto atividade distinta da sociedade civil. Mantenho a mesma conclusão que sempre defendi: o seu contributo, da esfera política, nunca será sequer equivalente àquele que nós, indivíduos, não só na esfera privada como pública, podemos contribuir para com a sociedade como um todo. Um dos contributos, e muito provavelmente o mais importante, por ser um dos seus pilares fundamentais, é a educação. Pretendo, assim, neste pequeno ensaio, ao dar estrutura a uma reflexão que tenho amiúde comigo próprio, demonstrar, ao mesmo tempo, duas ideias essenciais: em primeiro lugar, o porquê de, no meu entendimento, considerar a educação, não só um pilar das nossas sociedades, como da democracia propriamente dita; em segundo lugar, a razão de os seus contributos e benefícios se deverem principalmente a nós cidadãos, do que à política.

Quando pensamos nos diferentes problemas que são comuns enfrentarmos enquanto membros de uma comunidade: económicos, de ordem social, de saúde, ambiente, legitimidade das nossas instituições, entre outros, tendemos a culpar os diferentes decisores políticos. São a eles que, por razões óbvias, exigimos responsabilidade e esperamos que sejam as pessoas certas com o conhecimento adequado para lidar com esses problemas. No entanto, os nossos políticos são produto da nossa sociedade. Têm a mesma origem que todos nós. Acabamos por escolher dentro do que temos à mão de semear. Desta forma, se estamos perante uma comunidade onde não existe um bom sistema de educação, que chegue a todos e ofereça os meios mais sofisticados a cada cidadão, desde criança, para mais tarde votar e participar da melhor maneira possível, não podemos ter um governo dos decisores mais capazes. Pois, esses decisores também não existem para serem escolhidos. É uma perda de tempo estar a discutir, por exemplo, os problemas económicos e criticar o Ministro da Economia, se o sistema educacional falhou em primeiro lugar.

O objetivo de qualquer sociedade democrática é elevar os seus cidadãos de forma a termos um governo dos melhores, eleito pelos melhores. O professor João Carlos Espada no seu livro, Liberdade como Tradição, através do capítulo destinado a Karl Popper, argumenta que o filósofo britânico-austríaco defendia, como sendo o dever de qualquer democracia, atingir esta aristocracia universal, de comportamentos e espírito, e não uma aristocracia de classes. Não se nivela por baixo, mas tenta-se sim garantir um maior e melhor número de oportunidades para todos os cidadãos: algo que só pode ser alcançado pela educação. Desta forma, devemos nos questionar: afinal, que tipo de educação podemos ter que seja verdadeiramente virtuosa nas nossas escolas e universidades, ao serviço das nossas crianças e jovens? Talvez, um ensino que vise o corpo e a alma (ou a música, como diria Platão) seja, de facto, o complemento perfeito.

O corpo, não só porque ambas as dimensões estão correlacionadas, mas também pela simples razão de ser da máxima importância levarmos uma vida saudável e que as crianças cresçam, não só exercitando-se praticando diferentes desportos, mas também explorando a natureza e brincando umas com as outras, testando a sua imaginação, em vez de estarem presas em casa, vidradas em aparelhos tecnológicos. Os pais têm um papel fundamental neste aspeto. Diria mais, a educação que é dada em casa é tão ou mais importante que a via escolar. No entanto, é algo que não me atrevo a desenvolver neste artigo por ir lá para além das minhas capacidades.

Sobre a alma, e aqui surge a parte mais complicada, desta mesma reflexão; a única forma de elevar o nosso espírito é através da cultura, cultivando o nosso cérebro. Cultura neste contexto não é qualquer projeto que sirva de campanha política e ideológica, para angariar votos a quem se diz defensor da própria. Cultura é as diferentes artes (escultura, pintura, arquitetura, a literatura, cinema, etc.), como as artes liberais, do intelecto, em separação das áreas mais práticas e técnicas do conhecimento: como por exemplo, a filosofia, a ciência política, o direito, a matemática e a física, entre outras. Agora que já estabelecemos as devidas bases para concluirmos a primeira parte do argumento, vejamos como o filósofo Leo Strauss define uma educação que seja baseada no ensino das artes liberais, da cultura: «Liberal education is education in culture or toward culture. The finished human product of a liberal education is a cultured human being». Esta citação é retirada de um ensaio seu chamado: “What is liberal education?

Muito provavelmente neste texto, Strauss, referia-se mais à filosofia e talvez à ciência política, do que às ciências exatas, como a matemática; no entanto para uma análise holística e o mais prática possível, consideremos ambos os lados. Assim sendo, existem duas ideias principais a serem retiradas: em primeiro lugar, a educação liberal não é um processo de doutrinação, mas em que os professores devem ser pupilos dos grandes mestres que escreveram os grandes livros do passado. Os professores devem ser o elo de ligação entre a herança deixada pelas mentes brilhantes e os seus alunos, de forma a entender melhor o presente com vista ao seu futuro enquanto homens e mulheres. A melhor forma de estabelecer este elo ao estudá-las é mantendo um olho no presente e colocá-las em constante debate entre si. Só ouvindo, estudando as grandes mentes (sobretudo da filosofia) podemos atingir uma educação verdadeiramente virtuosa, como defendia Platão. Apesar da enorme dificuldade em nos tornarmos filósofos, podemos sempre, como relembra Strauss, filosofar e fazer o esforço necessário para atingir este ideal (mesmo que nunca lá cheguemos, isso não é o mais importante).

O segundo ponto é o de que esta cultura tem que ser composta pelas grandes mentes da nossa tradição ocidental e não de qualquer outra. Não significa que não existam grandes mentes na cultura oriental ou africana, e que não podemos delas retirar o que há de positivo. O problema prende-se com o facto de não só grande parte do contributo civilizacional ser ocidental, como não podermos fazer um juízo de valor equivalente para todas as culturas. O seu significado não pode ser algo relativo. Se nas ciências, como a matemática ou a física, pode haver uma compatibilização independente das origens das diferentes inovações, o mesmo já não se pode dizer sobre os contributos na filosofia, nem nos valores cristãos que são pilares das nossas democracias liberais. Não pode nem ser qualquer padrão de comportamento comum de grupo; se não a educação liberal e a “cultura delinquente” ou a “cultura de massas” eram equivalentes.

Para além destes aspetos, é importante relembrar que devemos diferenciar o que é cultura civilizacional e etnia de um povo. Isto significa que, não só podemos, como devemos, tratar todos os seres humanos com a mesma dignidade, mas não somos obrigados, nem podemos aceitar, todas as culturas como iguais à nossa (ocidental). De forma a sustentar este meu ponto, recordo as palavras de Sir. Roger Scruton: “Once we distinguish race and culture, the way is open to acknowledge that not all cultures are equally admirable, and that not all cultures can exist comfortably side by side.” Basear uma educação de artes liberais, onde todas as restantes culturas e as suas grandes mentes são equivalentes à tradição ocidental, e usando uma analogia straussiana, seria como regar um jardim com lixo e garrafas vazias.

Em suma, e complementando o argumento de Strauss com o de Popper, que referi anteriormente, a importância de uma democracia baseada numa aristocracia universal não é só de aumentar a qualidade de vida dos seus cidadãos; é também de combater uma cultura superficial de massas e consumo, um “ópio dos intelectuais” transmitido através dos meios de comunicação, uma valorização da verdadeira cultura e tradição, um combate às elites corruptas (seja qual for a sua origem política), defender as diferentes liberdades que acarinhamos do nosso modo de vida em sociedade, formar, não apenas indivíduos cultos, mas cultivados e homens de caráter, e tudo isto através da educação. As nossas universidades e escolas são instituições civis tão ou mais importantes que as políticas e, por isso, devem ser defendidas a todo o custo.

No início deste meu artigo, estabeleci como segundo objetivo explicar o porquê de considerar que a educação é um mérito na sua maioria da sociedade civil, e não da política e respetivos governos. Pretendo, para terminar, concluir precisamente este ponto fulcral. 

De um ponto de vista económico, a educação é um bem que cabe numa zona cinzenta entre a categoria de bem privado e público. Esta dimensão pública deve-se à necessidade de haver um acesso universal. Contudo, no meu entender, não justifica que daqui se deduza que o Estado deva assumir, para si, o papel principal de professor da sociedade. O seu papel deriva, quanto muito, daquilo que os indivíduos contribuem para a mesma. Na minha opinião, as funções do Estado remetem,  primeiramente, em garantir que o ensino é de facto universal; todas as crianças e jovens, não só não ficam de fora do ensino regular, como deve criar programas que financeiramente, em colaboração com as universidades, facilitam o acesso dos mais desfavorecidos economicamente. Outra função igualmente importante, é a de criar leis que protejam a liberdade de expressão e rigor académico-científico, inclusive de si mesmo. A partir daqui surge a razão do maior contributo ser sempre da esfera privada ou até comunitária, mas nunca política.

O Estado pode garantir que o ensino chegue a todos, mas o ensino propriamente dito é feito por indivíduos, e o foco do mesmo são unicamente os alunos e nunca qualquer causa ideológica. Ele só tem que defender a manutenção desta ordem natural. Assim sendo, cabe apenas às escolas e espaços académicos do ensino superior, olhar para as suas comunidades/regiões/país, definir como devem agir e pôr em prática a sua educação. Até porque as necessidades vão variando de local para local. Não devem existir limites de acesso a escolas ou de contratação de professores. No máximo, o governo pode estabelecer para as escolas do primário ao secundário, visando o corpo e o intelecto, disciplinas como obrigatórias a nível nacional; mas nunca interferir no seu conteúdo ou quem deve ensinar o quê. Graças a quem o faz, como pela sua importância, o ensino pertence à sociedade civil.