“A insustentável leveza da corrupção”
O equinócio de outono encetado no fim do mês de setembro trouxe ao país o tempo mais ameno, não obstante, o clima político nacional dos últimos dias colocou os termómetros em níveis de um mês de verão.
O dia 7 de novembro de 2023 ocupará seguramente um espaço de suma importância nos livros de História. Nesse dia, Portugal mergulhou vigorosamente numa crise política cujas raízes são remotas, as causas próximas e as consequências astronómicas: a demissão do primeiro-ministro, António Costa.
O país acordou na chuvosa manhã de 7 de novembro com a notícia da realização de buscas na residência oficial do primeiro-ministro, nos Ministérios do Ambiente e das Infraestruturas e detenção de um conjunto de suspeitos entre os quais Vítor Escária e Lacerda Machado, chefe de gabinete e melhor amigo de António Costa, respectivamente - intermediários em representação do Estado e em “defesa do interesse público” que padecem de um evidente conflito de interesses nas matérias em causa. O silêncio profundo em que submergiram os Palácios de São Bento e Belém tornou inteligível o grau de gravidade da situação.
Numa declaração ao país, o detentor das chaves de São Bento apresentou a sua demissão, alicerçado na inconciliabilidade de manutenção da integridade institucional que o cargo que ocupa exige face à situação em que se encontra - o encetamento de um inquérito crime pelo Supremo Tribunal de Justiça - circunstância eticamente reprovável e politicamente insustentável. Num país em que a culpa morre solteira e a assunção de responsabilidades é órfã, a demissão de um primeiro-ministro não é um facto político de somenos. Este momento configurou a gota de água que fez transbordar o copo que há muito anunciava verter.
Assisti com perplexidade ao término abrupto de um ciclo político e com ainda maior surpresa às vicissitudes da solução encontrada. Embora o Presidente tenha aceitado a demissão, a sua efetivação só terá lugar aquando da publicação em Diário da República, que só sucederá após a aprovação do OE2024 - evitando assim o encaminhamento do país para uma governação em duodécimos. O inexistente consenso no seio do Conselho de Estado, embora uma predileção pela dissolução do Parlamento e convocação de eleições, conferiu ainda mais importância ao poder da palavra que a Constituição confere ao Presidente.
No seio do vigente quadro parlamentar, o PS demonstrou vontade em formar um novo Governo e o PM sugeriu um conjunto de nomes que considerou possuírem “experiência governativa e reputação internacional”. Entre os nomes apresentados encontrava-se o de Mário Centeno, governador do Banco de Portugal - recomendação que coloca inequivocamente em causa a sua independência.
A política tem uma dimensão percepcional indubitável e a ocupação de espaços de destaque em jornais internacionais de tamanha influência quanto o The Economist, The Guardian e Le Monde deve ter feito corar de vergonha qualquer alma lusitana. Após anos a fio a tentar recuperar a prestígio internacional, outrora perdido em virtude da irresponsabilidade socrática este momento é indecoroso.
É impreterível que procedamos a uma reflexão, não apenas sobre os contornos deste caso, mas também sobre a arquitetura institucional e as mudanças que urgem ser feitas para que torne improvável a repetição da atual conjuntura.
Urge a prudência e o respeito pela presunção de inocência e independência do poder judicial, princípios pelos quais nutro respeito e que configuram aos meus olhos uma verdade de la palice. A existência de suspeitas não conferem ao indivíduo uma aura de culpabilidade. Neste cenário, as suspeitas de prática de corrupção têm lugar no núcleo nevrálgico do PM, tornando-o das duas uma: ou complacente ou negligente.
Em democracia ninguém está isento do cumprimento da lei a que subjaz o cumprimento de deveres de escrutínio e transparência. O processo que visa o primeiro-ministro tem de ser célere e pautado pela transparência, os cidadãos têm o direito de saber o que motivou o inquérito que conduziu o país a uma crise política e interrompeu a normalidade constitucional. Caso o Ministério Público (MP) possua provas substanciais que demonstrem a sua culpabilidade, estaremos perante um problema de natureza ética. A ser verdade que o PM agiu ou foi complacente com uma ação ilícita é imperativa a existência de uma reflexão quanto às virtudes e princípios orientadores da classe política. Se os tribunais o ilibarem e considerarem que não existe substância no caso que prove a existência de incumprimento do quadro jurídico, estaremos perante a judicialização da política. A reflexão dever-se-á centrar no papel do MP, cujo poder e influência conduziu à interrupção de uma legislatura e à colocação em causa da credibilidade da justiça.
É impreterível que procedamos a um raio X à situação vigente que nos permita identificar a verdadeira gravidade do problema. A corrupção é uma das principais ameaças ao Estado de Direito pois coloca em causa os valores a este subjacentes - a transparência, imparcialidade, integridade. Os dados não deixam margem para dúvidas e devem ser catalisadores da reflexão em torno da corrupção e práticas a esta associadas desde o nepotismo, ao compadrio, à cunha. O Índice de Percepção de Corrupção, relatório divulgado pela Transparency Internacional demonstra a magnitude do problema: a corrupção em Portugal atinge o valor de 18,2 mil milhões de euros anuais. Atos de contrição e declarações de intenções não têm valor quando não têm tradução na prática. A perpetuação da ideia de que desde 2015 “a prevenção da corrupção é uma prioridade” não passa de uma mera proclamação de intenções sem ligação com a realidade. Uma notícia do Expresso de 15 de junho revela que, até à data, só estavam implementadas três das quinze recomendações do Conselho da Europa.
A corrupção é uma realidade transversal que não escolhe geografias nem contextos. A sua prevalência não é um fado ou fatalidade, é consequência da configuração do processo decisório. No puzzle do combate à corrupção, três atores possuem um papel chave: a justiça, a comunicação social e a sociedade civil. A fraca força anímica democrática e a débil cultura de exigência face ao poder político são as causas da cedência dos titulares de órgãos de soberania ao eros do poder. Portugal é descrito eximiamente na prosa de Miguel Torga: “o país ergue-se indignado, moureja o dia inteiro indignado, come, bebe e diverte-se indignado, mas não passa disto. Falta-lhe o romantismo cívico da agressão. Somos, socialmente, uma colectividade pacífica de revoltados.”
Numa democracia liberal reina o pluralismo e é indispensável a existência de diversidade de interesses que, em instâncias próprias, são defendidos por intermediários. Não há mal nisso, o problema surge quando vínculos pessoais são usados para obter benefícios e um interesse particular, eminentemente de natureza política, se sobrepõe ao interesse público.
A bem da verdade urge a distinção entre dois conceitos chave: lobbying e tráfico de influências. A linha que os separa não é ténue como se faz querer parecer, é mais o que os separa do que une nomeadamente no enquadramento ético e jurídico. O tráfico de influências é um prática que captura o decisor não permitindo que nenhum outro interesse permeia a bolha decisória. Já o lobbying é uma atividade que mapeia os diversos interesses e, enquanto mediador, visa influenciar o processo legislativo, tomada de decisões e formulação de políticas públicas, dentro dos limites do quadro legal.
É tempo de colocar a regulamentação do lobbying na agenda do dia. A sua regulamentação visa a simetria de informação entre os diferentes atores que participam no processo de decisão, tendo em vista a prevenção de potenciais conflitos de interesses. A sua efetivação torna cristalino quem e como cada interesse influencia o processo decisório e é um garante de transparência e integridade de processos decisórios que tendem a ser complexos e intrincados.
Nenhuma cor política ou instituição é imune à existência de corrupção, não obstante, é evidente a existência de fatores propícios à sua existência, entre os quais a falta de escrutínio, excesso de burocracia e opacidade. “A simplificação promove a transparência, a burocracia promove a opacidade” - ideia patente na declaração do PM ao país é no mínimo paradoxal em virtude do seu proclamador ser o principal responsável pelo adensamento da burocracia.
Se a história não se repete pelo menos rima, havendo, inequivocamente, paralelismos que podem ser estabelecidos. A atual conjuntura traz à lembrança factos distantes no tempo, mas não na memória de muitos portugueses. Existe um padrão de comportamento nas governações socialistas desde o início do século: Guterres deixou o país num pântano, Sócrates saiu de cena após conduzir o país a uma bancarrota, António Costa, fruto político dos homólogos socialistas que o antecederam, demite-se na sequência de suspeitas de corrupção. Por mais spin doctors que existam, ninguém pode ser alheio a este facto. O Partido Socialista contemporâneo, ao decidir não virar as costas às práticas de promiscuidade, irresponsabilidade e nepotismo que pautaram o XVII Governo Constitucional, arrisca-se a cometer os mesmos erros. Como procederemos a uma reflexão sobre a dimensão política e ética da ação do PM cessante se ainda não iniciamos a discussão sobre a conduta de José Sócrates, que saiu de São Bento faz 12 anos?
Os casos que foram trazidos à luz do dia não são fruto de um acaso, são reveladores da essência do partido que há oito anos vê o país a partir de São Bento. O padrão de irresponsabilidade é a imagem de marca de um executivo que usa o poder para satisfazer os seus interesses.
O embrião desta crise política não é o comunicado da Procuradoria Geral da República, reside na perpetuação de uma cultura de impunidade que mais cedo do que tarde findaria. Este momento configura um auto-retrato da configuração do processo de decisão num país em que reina a informalidade. O que está em causa não é a veracidade dos factos do processo que envolve António Costa mas as perpetuação de práticas no Largo do Rato que lesam o interesse público. Lacerda Machado, Vítor Escária e João Galamba, com currículos de “boas ações” pouco recomendáveis e sem a equidistância suficiente face aos seus interesses que lhe permitam tomar uma decisão justa, são pessoas que o PM, no uso da sua faculdade de livre arbítrio, escolheu, promoveu e pelas quais intencionalmente se decidiu rodear, o que o torna incontornavelmente cúmplice das suas práticas.
A submissão da esfera política a uma cultura de portas giratórias que unem o universo político e económico é o legado da governação do PS. A audácia com que se desafia a lei e perpetuação de uma cultura cívica de “quid pro quo” (toma lá, dá cá) somente floresce por existir um ecossistema político em que o executivo segue a máxima do rei sol, Luís XIV: “O Estado sou eu”.
Nada faria prever o tsunami que assolaria o país político nos dias subsequentes,um verdadeiro mês horribilis, em parte derivado da hiperatividade institucional dos mais altos dirigentes da nação. Destaco dois momentos em concreto: a culpabilização do PR pela crise política e as declarações do PM em São Bento. A atribuição do monopólio da culpa do desencadeamento da crise política ao Presidente da República pelo primeiro-ministro cessante é corolário de um traço de personalidade que a tradição filosófica grega denomina de hubris - expressão que faz alusão a uma confiança excessiva e altivez, que neste caso em concreto se manifesta através da autoproclamação enquanto farol da moralidade. Dias depois, a defesa político-jurídica na Residência Oficial após o seu pedido de demissão evidencia o desrespeito pelas instituições e pelos locais onde elas moram.
Perante um xadrez político em metamorfose a marcação das eleições legislativas para 10 de março, despertou em mim um otimismo agridoce.
O antídoto para uma governação irresponsável é a existência de uma oposição vigorosa, a direita portuguesa deve isso ao espaço não socialista. As próximas eleições legislativas serão determinantes para o desenho do futuro político dos anos subsequentes. A direita enfrentará um teste à sua sobrevivência: se não triunfar nas urnas, o ciclo hegemónico de vitórias do PS conduzirá o espaço da direita a um dilema. Para que passe de aspirante a triunfante terá de demonstrar a verdadeira essência daqueles que se auto proclamam como guardiões da democracia. Uma direita com um projeto assente no crescimento económico e justiça social, que não seja meramente a expressão da alternância democrática mas que configure uma autêntica alternativa.
Há no ar que respiramos um aroma a ventos de mudança. Portugal precisa de um líder carismático, reformista, não de alguém temperamental, populista, demagogo. Em defesa dos imoderados invocam-se virtudes como a firmeza do caráter e a audácia das convicções e olvida-se a lacuna ou irracionalidade programática que os seus projetos representam - axioma que se aplica aos protagonistas dos dois lados do espectro político.
Nos idos do cinquentenário da democracia portuguesa, urge que não cedamos à tentação de tornar o dia 10 de março numa luta titânica entre a justiça e a democracia. A 25 de abril de 1974 floresceu a democracia. Volvidos 50 anos, aguardo com expectativa o triunfo dos democratas sob aqueles que demonstram que pela democracia liberal não nutrem nem um pingo de apreço.