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No passado dia 11 de setembro, Derna, uma cidade no leste da Líbia com 100.000 habitantes, foi atingida pela tempestade mediterrânea Daniel, o que provocou a rotura de duas barragens e por conseguinte uma inundação que atravessou a localidade. Um quarto da cidade em causa desapareceu: prédios residenciais, veículos, famílias, tudo aquilo que se possa imaginar foi arrastado ou arrasado; e neste momento os destroços e os corpos que se espalham pelas ruas contam a desgraça de um país dividido em dois governos, com uma guerra e instabilidade constantes, mas com uma catástrofe natural comum a todos.

Os números não são encorajadores. Cerca de 11.300 pessoas morreram e outras 10.000 são dadas como desaparecidas, possivelmente mortas também, segundo o Crescente Vermelho do país. Contudo, os números são difíceis de fixar e podem facilmente duplicar, chegando até às 25 mil, segundo o presidente da câmara da cidade, Abdelmonem al-Ghaithi. Mas a realidade é que não se sabe ao certo se algum dia haverá um retrato fidedigno da tragédia que atingiu o país.

O cenário que se verifica na cidade é apocalíptico: a região encontra-se coberta de lama e na zona de praia dão à costa corpos humanos, móveis, brinquedos, sapatos e todo o tipo de objetos que foram arrastados dos edifícios pelas correntes em direção ao mar. Um membro das equipas de salvamento afirmou que se verificam ‘’corpos em todo o lado, dentro das casas, no mar. Onde quer que vamos, encontramos homens, mulheres e crianças mortos’’. Atualmente, as autoridades líbias temem a escassez de sacos para cadáveres e que a grande quantidade de corpos espalhados pelo chão possa levar a uma epidemia na cidade, uma vez que os corpos ‘’apodrecem’’ ao sol e contaminam a água que as pessoas consomem.

A onda de ajuda humanitária

Na tentativa de ajudar os sobreviventes e de voltar à normalidade têm-se verificado várias ações como carregamentos de ajuda humanitária e a criação de fundos monetários que visam a reconstrução da cidade e de algumas das áreas mais afetadas pelas inundações.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) providenciou um carregamento com cerca de 29 toneladas, com provisões para 250 mil pessoas, à cidade líbia. Este incluiu medicamentos essenciais, material cirúrgico de emergência, equipamento médico e sacos para cadáveres. A mesma organização disponibilizou também 10 milhões de dólares (9,3 milhões de euros) com o objetivo de financiar ajuda para as vítimas das inundações. A verba em questão foi desbloqueada de imediato para salvar vidas e evitar uma crise sanitária que possa resultar das condições precárias que a catástrofe natural provocou na região. O subsecretário-geral da ONU para Assuntos Humanitários, Martin Griffiths, afirmou que ‘’restabelecer rapidamente algum tipo de normalidade deve ter precedência sobre todas as outras preocupações neste momento difícil para a Líbia’’.

Visando o mesmo objetivo, o presidente do grupo Banco Africano de Desenvolvimento (BAD), o nigeriano Akinwumi Adesina, prometeu que a instituição ‘’fará tudo o que estiver ao seu alcance’’ para ajudar a Líbia, mas não se verificou qualquer tipo de apoio concreto. No entanto, é evidente para todos os dirigentes das mais variadas instituições e organizações que esta catástrofe violenta e cruel sublinha a necessidade de uma reconstrução urgente de forma a proteger vidas e garantir meios de subsistência no país.

Além disso, o governo do leste da Líbia aprovou a criação de um fundo para a reconstrução da cidade de Derna e das zonas atingidas e tem apelado à realização de uma ‘’conferência internacional’’ para preparar os primeiros projetos. Contudo, apesar dos esforços do parlamento, o governo rival, situado na capital Trípoli, tem ignorado os anúncios e não confirmou qualquer tipo de envolvimento.

A realidade é que existe desconfiança quer por parte das organizações quer por parte da população, pois teme-se que haja elementos do governo e das autoridades líbias que possam vir a beneficiar ilegalmente do projeto de reconstrução da cidade, e teme-se também que estes se estejam a tentar aproveitar da situação preocupante que domina o país para desbloquear bens e investimentos estrangeiros dirigidos à Líbia. Avaliadas em centenas de milhares de dólares, estas verbas foram congeladas em 2011 pela ONU para evitar eventuais desvios.

Um governo desorganizado – a verdadeira tempestade que atinge o país?

A Líbia era um país que possuía todas as condições para ser bastante desenvolvido aos mais variados níveis: exporta recursos como petróleo, gás natural e minérios e tem uma pequena população para o seu território, não apresentando, portanto, problemas demográficos. Contudo, é um claro exemplo de um estado falhado devido à grande instabilidade política de que tem sido alvo nos últimos anos.

Apesar de em tempos a Líbia ter sido um país estável, a instabilidade política está presente no país há aproximadamente 50 anos, com períodos de revolução e conflito intercalados por alguns períodos de ligeira estabilidade concedida pelos vários governos de transição. Sendo assim, e tendo em conta que outrora foi um país rico em petróleo e com um dos mais elevados padrões de vida em África, onde é que tudo falhou?

O governo de Muamar Gadafi teve início em 1969 e sempre apresentou brutalidade e desentendimentos, tanto internos como com outros países, o que eventualmente acabou por levar a protestos por parte da população. Estes, que de início eram pacíficos, rapidamente se tornaram violentos e sangrentos e com o propósito de derrubar o governo. Em 2011 esse propósito é finalmente alcançado e o Conselho Nacional de Transição é reconhecido como o novo governo legítimo da Líbia pela NATO e por vários países árabes e ocidentais. No entanto, a estabilidade é momentânea pois começam a surgir problemas económicos, sociais e políticos que levam a uma crescente tensão e insatisfação contra o governo que, mais tarde, desencadeiam até mesmo uma guerra civil.

Desde então, a Líbia está dividida em administrações rivais, uma no oeste e outra no leste: o Governo de Unidade Nacional, sito em Trípoli, e o Governo de Estabilidade Nacional, em Tobruque, respetivamente. Esta divisão é apontada como uma das causas para a dimensão do caos que surgiu na cidade de Derba. Hani Shennib, presidente do Conselho Nacional para as Relações entre os Estados Unidos e a Líbia, afirma que a divisão política tem um grande impacto na forma como os serviços são prestados em caso de catástrofe. De facto, os dois governos não são capazes de gerir o auxílio que as populações necessitam, uma vez que não se verifica a existência de instituições como a proteção civil ou as forças armadas que permitam uma intervenção direta em situações de crise e emergência nem um mapeamento que auxilie nessa mesma intervenção.

A indignação espalha-se pelas ruas

Em Derna, na Líbia, perderam-se familiares, amigos e habitações, não existem procedimentos de prevenção e evacuação suficientemente eficazes e a revolta também aumenta uma vez que o povo se sente negligenciado e sem apoios suficientes para a situação que vivenciam. Tenta-se arranjar a todo o custo um culpado para o ambiente de destruição a que as pessoas assistem.

Os cidadãos, uma semana depois das chuvas torrenciais terem provocado o colapso de duas barragens, manifestaram a sua ira contra as autoridades líbias na mesquita Al Sahaba, um marco de Derna. Nos vídeos que circulam pelos meios de comunicação observam-se as pessoas a entoar slogans anti-governamentais. Estes protestos podem vir a ganhar maior alcance nos próximos tempos uma vez que alguns manifestantes, à porta da mesquita, apelaram ao povo de Benghazi - a segunda maior cidade da Líbia - para ‘’sair e juntar-se ao protesto’’.

Uma das muitas razões para se verificar a existência de sentimentos disfóricos entre a população é o último discurso de Aguila Saleh, presidente da Câmara dos Representantes do parlamento líbio. Durante o mesmo, o presidente tentou desviar a culpa da calamidade dos responsáveis pelas infraestruturas da cidade. ‘’A catástrofe que atingiu o país é natural. Está nas mãos de Deus’’ disse Saleh numa sessão parlamentar, tendo também incentivado os líbios a não fazerem acusações sobre os culpados pela destruição.

Além de ira e desamparo, os protestantes sentem ao mesmo tempo uma certa incerteza, todos eles questionam os valores e a integridade das figuras de autoridade do país. Um deles, Mohammed Ben Hamad, acredita que ‘’toda a gente em Derna, desde o chefe do município a todos os funcionários’’ é corrupta. ‘’Derna deve ser deixada como está, ou uma empresa estrangeira deve ser envolvida. As almas dos mártires não serão em vão’’, afirmou.

Observando o cenário do país facilmente se percebe que esta catástrofe natural acabou por trazer ao de cima não só corpos e destroços, como também inúmeras falhas sociais e políticas. Faz com que se levantem inúmeras questões de como seria a abordagem numa situação de calamidade como esta a que assistimos agora se o governo não estivesse dividido e houvesse a cooperação entre as duas áreas territoriais, assim como a prestação de serviços necessários e adequados à sobrevivência e à manutenção da qualidade de vida da população. Mostra-nos as consequências nefastas da junção de desastres naturais com os desastres que o próprio homem provoca.

No entanto, a situação caótica que atinge a Líbia pode ser vista como uma oportunidade de reconciliação e união por parte dos dois governos rivais uma vez que se torna óbvio que, independentemente das ideologias e pensamentos diferentes que os dois possuem, nem a tempestade nem as suas consequências são seletivas e acabam por atingir todas as pessoas, quer vivam no leste ou no oeste do país.