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Milhares de pessoas abandonaram o território de Nagorno-Karabakh no mês passado. Deixaram para trás as suas casas, muitos dos seus pertences, os seus empregos, mas mais que isso deixaram para trás a sua história, a sua memória, o seu passado. É neste pequeno enclave com cerca de 4,400 km² (mais ou menos a mesma dimensão do distrito de Vila Real) que viviam cerca de 125 mil arménios. Porém, o território de Nagorno-Karabakh fica dentro do Azerbaijão, a quem internacionalmente é reconhecida a sua pertença.

Devido à difícil situação política e militar atual (…), foi decidido dissolver todas as instituições do Estado até ao dia 1 de janeiro de 2024, e a República de Artsaque (nome em arménio de Nagorno-Karabakh) deixa de existir.

Foi desta forma que decretou Samvel Shakhramanyan, o atual Presidente desta República separatista arménia, anunciando o fim de um conflito que assola a região da Transcaucásia ou Cáucaso do Sul desde o fim da guerra fria. O esvaziamento de Nagorno-Karabakh foi levado a cabo por forças azeris, que tomaram o enclave de etnia arménia. Esta mesma região tinha declarado a sua independência em 1991, mas não houve um reconhecimento internacional. Como escreve Angela Stent, na sua obra Putin’s World, sobre Nagorno-Karabakh “(…) the longest-running secessionist conflict in Eurasia”. Contudo, para uma melhor compreensão do conflito, temos de retornar ao final da Primeira Guerra Mundial, quando três grandes impérios chegaram ao fim. É na fronteira entre o Império Otomano, o Império Persa e o Império Czarista Russo (de quem a Rússia é herdeira), que encontramos a região da Transcaucásia, ou Cáucaso do Sul. É essa região que compreende a atual Geórgia, Arménia e Azerbaijão. Após o fim da Grande Guerra, uma crise geopolítica irrompeu na região. Para aumentar a complexidade da situação, o Império Russso viu nascer no seu lugar, após a Revolução de Outubro, um regime Socialista Soviético.

Em 1921 um conselho regional do Cáucaso entregou a região de Nagorno-Karabakh à Arménia. Contudo, a Guerra Civil Russa e consequente vitória Bolchevique ditou a incorporação tanto da Arménia como do Azerbaijão na URSS e consequentemente Nagorno-Karabakh é concedido ao Azerbaijão como uma república autónoma. O trilho até à formação de uma República Federativa Socialista Soviética Transcaucasiana foi tumultuoso. A região é composta por uma grande multiplicidade étnica e uma consequente desarmonia crónica. É sintoma dessa desunião a tentativa de independência da Transcaucásia após a queda do império czarista, mas rapidamente a região dividiu-se em três repúblicas distintas, a Geórgia, o Azerbaijão e a Arménia.

A desunião entre os territórios do Sul do Cáucaso e suas variadas etnias facilitou a entrada do exército vermelho e dos soviéticos, que rapidamente ocuparam esses Estados, tornando-os repúblicas soviéticas. “Divide and conquer” a estratégia soviética fomentada durante a liderança de Estaline, instrumentalizou as cisões internas existentes nessas repúblicas. Não foi acidentalmente, que o território de Nagorno-Karabakh, onde mais de 90% da população é arménia, é concedido por Estaline à República Federativa Socialista Soviética do Azerbaijão, tornando-se mais tarde uma região autónoma (oblast), ainda que sob o domínio de Moscovo.

Durante o domínio soviético as animosidades na região foram suprimidas, muito devido às políticas de uniformização desses povos e das suas culturas, sob a tutela apertada de Moscovo. Mas a queda da URSS veio reacender a chama dos nacionalismos esmagados por Estaline e pela URSS. Já em 1988, ainda antes da implosão da União Soviética, a Arménia passou a reivindicar o território de Nagorno-Karabakh como seu. Os habitantes do enclave queixaram-se de discriminação cultural e subdesenvolvimento económico, pedindo que enclave fosse transferido do Azerbaijão para a Arménia. Os arménios cristãos percepcionam os azeris muçulmanos, cuja língua é turca como sendo aliados aos turcos, por isso são associados ao genocidio arménio às mãos do Império Otomano. Com isto começa o primeiro conflito armado entre as partes, que piorou em 1991 com a saída do terreno por parte do exército soviéico.

A hostilidade étnica suprimida pelo sistema soviético reemergiu assim que Mikhail Gorbachev começou o seu programa reformista e de liberalização. A guerra entre arménios e azeris intensificou-se em 1992. Em 1991 a região de Nagorno-Karabakh declara a sua independência unilateralmente como “República do Alto Carabaque” e a guerra vai opor azeris e karabakis, apoiados pela Arménia, apesar da própria Arménia não reconhecer o território como independente. As forças arménias e karabakis demonstraram estar mais bem preparadas para o conflito, tendo ajudado à causa a crise política interna vivida na altura no Azerbaijão. A Arménia passa então a dominar o enclave separatista, que fica independente do Azerbaijão, ainda que não seja reconhecido internacionalmente como independente. Esta foi a guerra mais sangrenta entre azeris e arménios, durou cerca de dois anos e só ficou parcialmente resolvida com os protocolos de Bisqueque que levaram a um cessar-fogo em 1994, entre Yerevan e Baku. Quem coordena estas negociações é o Grupo de Minsk que é liderado pelos Estados Unidos, Rússia e França. O resultado do conflito foram 25 mil mortes, o deslocamento de 400 mil arménios e 700 mil azeris. Foram relatadas tentativas de limpeza étnica de ambos os lados e diversas investigações e denúncias de ONG´s internacionais mostram que foram massacrados civis e muitos outros foram forçosamente deslocalizados, por ambos os exércitos.

De 1991 a 1994, o período de tempo que delimita a Primeira Guerra Karabakh, os arménios foram capazes de controlar a região de Nagorno-Karabakh, conseguindo até ir para lá das fronteiras do enclave, criando uma ligação importante entre esta região e a Arménia por uma uma estrada montanhosa conhecida como corredor de Lachin. Nada funciona agora sem ajuda externa da Arménia, país ao qual o território está ligado por este corredor de Lachin, ou a “estrada da vida”, como o conhecem os seus habitantes. Contudo, após o cessar-fogo, nenhum acordo de paz foi assinado, por isso embora os arménios declarem o seu próprio estado em Nagorno-karabakh e de facto o controlem, o governo Azeri não aceita que o enclave já não integre o seu território. Apesar do falhanço do processo de Minsk, que procurou resolver o conflito através do diálogo e uma solução negociada, ficou assegurado que a situação de Nagorno-Karabakh não seria resolvida com recurso à força.

Periodicamente o conflito ainda retoma vias de facto, como em 2016 com uma guerra de quatro dias, que trouxe os fantasmas sangrentos de volta. Desde 1992 o Grupo de Minsk tem-se encontrado regularmente, tentando encontrar soluções para o problema. A Rússia tentou por diversas vezes reunir forças arménias e azeris para negociar um acordo de paz, mas falhou sempre. Enquanto os arménios reclamam Nagorno-Karabakh com base no princípio do direito à autodeterminação dos povos, os azeris defendem que Nagorno-Karabakh é seu partindo do direito à integridade territorial. Baku fez um novo ataque em 2020, tendo sido bem sucedido ao recuperar o terreno “extra” para onde os arménios tinham conseguido progredir na Primeira Guerra Karabakh. O balanço foi de cerca de 7 mil mortos entre os dois lados. Esta situação voltou a ficar apenas parcialmente resolvida em 2022, após um acordo negociado por Putin.

A Rússia tem sido historicamente ambígua nos seus esforços de resolução da situação, apesar de geralmente ter tido um papel construtivo coordenando esforços bilaterais com França e Estados Unidos, é notória a falta de resolução e clareza que tem demonstrado, procurando sempre manter e reforçar a sua alavancagem tanto com a Arménia como com o Azerbaijão. A Arménia tem bases militares russas no seu território (102ª Base Militar Russa em Gyumri e a 3624ª Base Aérea Russa no Aeroporto de Erebuni perto de Yerevan), enquanto com o Azerbaijão as ligações económicas são muito fortes. O conflito de Nagorno-karabakh permitia à Rússia poder de alavancagem na região, podendo interferir fortemente em Yerevan e Baku, daí o interesse em manter o conflito congelado, ou seja, onde não ocorre uma guerra no sentido literal e em que o conflito está estagnado militarmente. Contudo, nenhum tratado de paz ou outra resolução política foi encontrada para os resolver. São esses a Ossétia do Sul e a Abecásia na Geórgia e a região da Transnístria na Moldávia, tal como o enclave separatista de Nagorno-Karabakh no Azerbaijão. Estes conflitos criaram quatro estados que não são reconhecidos internacionalmente onde a Rússia exerce a sua influência.

Os conflitos congelados são essenciais para a política externa de Putin, tentando manter em diversos pontos do mapa a sua esfera de influência e poder de alavancagem. A situação de Nagorno-Karabakh não é nisso diferente, mas a guerra russo-ucraniana veio mostrar que existem prioridades para a política externa russa, dentro do “near abroad”. A prioridade é a Ucrânia.

Os combates em Nagorno-Karabakh retornaram no ano passado, tendo sido registadas pelo menos mais de uma centena de mortos. No berço deste novo “aquecer” do conflito estará um posto de controlo estabelecido pelo Azerbaijão no corredor de Lachin que tem isolado a região de Nagorno-Karabakh. A Rússia emitiu um comunicado denunciando o Azerbaijão, contudo com pouca veemência, deixando Yerevan de pé atrás na relação com a Rússia, até então a sua principal aliada.

A 19 de setembro de 2023, dias depois de um acordo de reabertura do corredor de Lachin, que poderia levantar esperanças e atenuar a crise, tal não veio a correr como esperado. O Azerbaijão prontamente lançou o que designou por ofensiva “antiterrorista”. Para complicar os esforços diplomáticos, o Azerbaijão veio também restringir os acessos ao enclave, e ajudas da cruz vermelha vão estar impedidas de passar, deixando as prateleiras vazias, agravando a crise humanitária na região para níveis críticos.

O enclave de Nagorno-Karabakh está agora sob total controlo azeri. A cada dia que passa mais cidadãos arménios evacuam as suas casas, deixando para trás uma região quase deserta. No passado dia 28 de setembro mais de metade da população tinha saído, agora estima-se que o número atinja mais de 100 mil pessoas. Nikol Pashinyan, primeiro-ministro da Arménia, tem olhado para o Ocidente, após sentir-se abandonado pela Rússia, que nada fez para impedir o avanço do Azerbaijão. Como escreveu Alexander Gabulev “Armenian society, particularly young people, feel betrayed by Moscow”. Há menos de 2 meses, o Ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, afirmou que os arménios do Nagorno-Karabakh tinham que aceitar a sua integração no território do Azerbaijão, expondo a indisponibilidade da Rússia para intervir.

Será este um efeito colateral indesejado por Putin? E podemos afirmar que a Guerra Russo-Ucraniana pôs fim ao enclave de Nagorno-Karabakh? O corredor de Lachin vê as suas sinuosas estradas entupidas por carrinhas e automóveis de residentes do enclave, que agora, após a anexação efetiva do enclave no Azerbaijão, se confrontam com a dura realidade de terem que fugir de casa. Yerevan acusa Baku de uma limpeza étnica, enquanto as suas cidades são inundadas por refugiados e manifestações. Será este o ponto de viragem da Arménia para a NATO e para a União Europeia?