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Neste final de outubro, assumidamente considerado a altura perfeita para vermos filmes que nos aterrorizam, vi-me com vontade de revisitar o clássico Música no Coração (1965). Claro que não foi o Halloween que me fez ver este famoso musical, mas sim o facto de ter existido uma versão totalmente alemã que havia estreado em outubro de 1956 na RFA, antes de Hollywood ter comprado os direitos. Contudo, embora retrate maioritariamente a Áustria, há muito da Alemanha presente nesta história. Ao passar os olhos sobre as doçuras e travessuras que as redes sociais e os jornais nos mostram, deparo-me com imagens de uma Alemanha alterada. Digo alterada, por denotar uma mudança considerável no seu meio político-social com os inúmeros problemas que têm surgido à porta do Reichstag. Seja pelas complicações energéticas e económicas trazidas pela guerra vizinha ou pelas migrações avultadas nas suas partes fronteiriças; a verdade é que toda esta mudança tem vindo a ser capitalizada por um elemento extremamente particular. Falo-vos da Alternative für Deutschland (AfD) que, para quem não está familiarizado, é um partido alemão de extrema-direita desenhado a partir de ideias populistas, nacionalistas e ultraconservadoras. Porém, após ser feita uma biópsia, o partido liderado por Tino Chrupalla (AfD) também pode ser entendido como um grito saudosista de outros tempos, audível através de um sonoro megafone de racismo, xenofobia e, sem surpresas, neonazismo. O que me leva a fazer o ato pecaminoso de escrever especificamente sobre este partido é o facto de os seus números terem aumentado drasticamente nos últimos tempos, não só em votos, como noutras circunstâncias que lhes estão associadas. Tanto dentro como fora do Bundestag, a matemática do Bundesamt für Verfassungssucht e do DAWUM tem comprovado esta recente e alarmante propagação do ideal da AfD. Só no ano de 2022, ocorreram em solo alemão cerca de 20,967 atos criminosos protagonizados por extremistas de direita. Fazendo-se as contas, isto resulta numa estrondosa média de 57 crimes desta natureza por dia. Além disso, há que chamar a atenção para as demonstrações de extrema-direita, onde se assistiu a um crescimento de 60% em relação ao ano de 2021. Há, por isso, um acordar das fervorosas tomadas de posição deste eleitorado, ao mesmo tempo que um adormecer do medo em colocá-las à vista de todos. Já no parâmetro das sondagens, os valores nacionais choram uma duplicação do número de votantes da AfD comparativamente ao ano passado, passando de 10.3% para 21% em apenas 2 anos. Entretanto, regiões mais orientais, como Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental, Brandeburgo, Turíngia e Saxónia, elevaram o partido de extrema-direita acima dos 30%, sendo, inclusive, o mais votado. Posto isto, a verdade é esta: hodiernamente, a AfD é o segundo partido mais votado da Alemanha.

O status quo alemão suscita uma panóplia de respostas e juízos valorativos quanto a esta ‘verdade’, daí o seu caráter analítico altamente apelativo. Ainda assim, não se possuindo as ferramentas necessárias para uma análise aprofundada, passa-se a uma associação entre episódios perentórios e as suas consequências diretas na nação germânica. Talvez o seu momento originário tenha sido, precisamente, o eclodir da Guerra entre a Ucrânia e a Rússia. Para além de ter pregado uma valente rasteira às ambições energéticas do recente Governo de coligação entre SPD, Bündnis 90/Die Grünen e FDP, a agressão russa acabou por minar substancialmente o poderio económico alemão. Resumindo, a República Federal Alemã acabara de mergulhar numa profunda recessão económica e num mar bravo de agressivas críticas. A esperança gloriosa na transição para uma energia limpa, afinal, nada teve de verde. As promessas feitas pelo Chanceler Olaf Scholz (SPD) no conceituado discurso The Global Zeitenwende ainda não surtiram o efeito desejado e certas escolhas feitas não vão ao encontro do que tinha sido dito na tomada de posse. A partir do momento em que foram cortados os fornecimentos de gás natural pelos gasodutos russos e em que a economia do seu parceiro económico chinês começou a abrandar, notou-se que se havia dado um passo maior que a perna. Diz-se que tempos desesperantes exigem medidas ao mesmo nível, levando-me a crer que a reabertura de centrais a carvão possa cair nessa categoria. O preço do gás natural duplicou desde 2021 e o preço da eletricidade também não tem hora marcada para abrandar a sua escalada. Esta “amarga” tentativa de reduzir o consumo de gás, como interpretara o Ministro de Assuntos Económicos e Ação Climática Robert Habeck (Bündnis 90/Die Grünen) tem, no entanto, um problema. As empresas do ramo energético contam com enormes dificuldades em acompanhar aqueles valores exacerbados, ao que acrescenta haver uma extensa burocracia que pouco auxilia todo o processo de transição. Isto, aliado à imensa dificuldade em encontrar mão de obra qualificada e à necessidade extrema de se implementar uma digitalização no setor empresarial, leva-nos a perceber o outro fator aqui em causa. Curiosamente, a Alemanha possui, atualmente, um dos piores desempenhos económicos a nível global. Estudos do passado mês de setembro baixam as expectativas alemãs para o último trimestre do ano, chegando a apontar para um declínio de aproximadamente 0,6%. Quem imaginaria que os demais livros escritos a vangloriar a estratégia económico-financeira alemã estariam, passado uma década, completamente desatualizados. À medida que os relatórios vão saindo, o Ministro das Finanças Federais Christian Lindner (FDP) vai declarando que as empresas e as populações “merecem um alívio”. Para colmatar estas adversidades, já foram postas em prática medidas como a Wachstumschancengesetz (traduzido à letra para Lei de Oportunidades de Crescimento) e a Zukunftsfinanzierungsgesetz (Lei de Financiamento Futuro), assim como se investiu na aceleração do planeamento e aprovação de processos referentes às migrações. Todavia, este último aspeto referido vai mais longe. As migrações são também uma questão delicada que tem vindo a dar grandes dores de cabeça ao Bundestag e à UE no geral. A onda de imigração e os incontáveis pedidos de asilo vindos maioritariamente pelo sul da Europa também chegaram ao seu coração pela fronteira com a Polónia e com a Chéquia. A Alemanha viu-se, então, obrigada a fazer algo a nível externo e interno, tendo as decisões em ambos os campos sido criticadas pela oposição nacional e internacional. A nível externo, seguiu-se por dois caminhos igualmente determinantes. Por um lado, ajudaram-se organizações humanitárias de resgate no Mediterrâneo, através de um apoio financeiro para o salvamento marítimo civil e projetos em terra. Por outro lado, chegou-se a um entendimento quanto à necessidade de uma reforma do Pacto Europeu para Migrações e Asilo, mostrando que a Alemanha não iria impedir ou opor-se a essa operação. Face a estas medidas, uma encomenda com selo italiano chegou logo aos correios alemães, não tendo sequer ficado presa na alfândega. Se não estou em erro, tratava-se de um “espanto” de Giorgia Meloni em se financiar ONG’s que fazem o dever legal, humanitário e moral de salvar pessoas da morte no mar. Não esquecendo o bilhete que o acompanhava onde estava expressamente reiterado que a Alemanha se deveria preocupar consigo mesma. Annalena Baerbock (Bündnis 90 / Die Grünen), Ministra dos Negócios Estrangeiros, acredita que as conversações para a reforma do Pacto da UE foram um sucesso. Segundo as suas palavras, queriam-se certezas acerca do reforço dos “cuidados humanitários mínimos”, ou seja, que os refugiados teriam acesso, pelo menos, à educação e a cuidados de saúde. Um outro tipo de encomendas, mas não menos importantes, é certo. A nível interno, houve um apertar da segurança nas fronteiras orientais alemãs. Sem querer desconsiderar o gesto fofinho e as palavras simpáticas da chefe de Estado italiana, a maior parte dos impulsos para este reforço têm vindo, aliás, de dentro do Reichstag. A quantidade de pessoas que têm chegado ao território alemão é, manifestamente, incomensurável, havendo, assim, um receio da oposição de que as medidas não surtam o efeito desejado ou que não tenham qualquer efeito. Só no ano passado, aproximadamente 217,770 pedidos de asilo chegaram aos escritórios alemães, ao que já se pode afirmar que, só até setembro deste ano, foram registados 204,460. Se mesmo assim estes números não são suficientemente chocantes, lembremo-nos que os refugiados resultantes da agressão russa à Ucrânia não precisam de requisitar aquele tipo de documentação. É darmos uso à imaginação ou à calculadora para sabermos o real valor de x nesta equação. Ainda para mais, a resolução deste problema tem sido tudo menos pacífica. As grandes discussões entre os partidos-membros da coligação governativa de centro-esquerda centram-se imensamente à volta desta temática. Enquanto os verdes (Bündnis 90/Die Grünen) recusam-se a declarar certos países (Tunísia, Marrocos, Argélia e Índia) como ‘países seguros’, os liberais (FDP) avançam com propostas para se terminar com a atribuição de welfare payments aos migrantes. Quanto aos sociais-democratas (SPD), resta-lhes engendrar soluções para a questão da migração e para a ‘família disfuncional’ que se instalou lá por casa. Portanto, o que retirar daqui? Uma coisa é certa, nem as categóricas refeições do Oktoberfest ou o prestigiado aniversário da Deutsche Wiedervereinigung (unificação alemã) servem para escapar a este Deutschenschrecken (terror alemão). Quanto ao resto, devemos perceber o porquê de se viver um presente onde uma cultura tão ilustre como a alemã tem sido deixada ao esquecimento por uma parte considerável da sua população. Talvez recordá-la seja o único remédio que consiga sugerir, mesmo que não se passe este tipo de receitas nas farmácias. Que se estudem os escritos de Hannah Arendt sobre como o totalitarismo alemão se alicerçou num profundo espírito antissemita e imperialista, visível nos tempos de hoje nas opiniões imploráveis sobre as migrações e no antagonismo devoto presente nos patriotismos. Que se leia Nietzsche nas horas vagas para se perceber que a raiz dos crimes de ódio e das amostras de poder vêm de sedutores ditirambos dionisíacos onde se evoca um Homem “mais forte, mais mau e mais profundo; e também mais belo”. Por fim, que se ouça a comovente Edelweiss, para nos lembrar que o terror pode desaparecer no momento em que se coloca uma flor ao peito.