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“All government, indeed every human benefit and enjoyment, every virtue, and every prudent act, is founded on compromise and barter. We balance inconveniences; we give and take; we remit some rights, that we may enjoy others; and we choose rather to be happy citizens than subtle disputants.” Edmund Burke, Burke’s Speeches and Letters on American Affairs.

Foi com os olhos postos na planície alentejana que, na imensidão do horizonte cujo fim não é discernível e a quietude é indiscutível, mergulhei no mundo literário no verão que em breve finda.

Ser companheira dos grandes nomes da filosofia na peregrinação em direção ao saber torna ainda mais célere o processo de consciencialização da nossa pequenez e, em simultâneo, incita à submersão em debates que fizeram com que esses autores se tornassem nomes incontornáveis nos grupos de debate e reflexão político-filosófica.

Edmund Burke, foi um dos selecionados para companheiro de jornada por, na sua obra, escrita há mais de duas décadas, trazer à tona questões fracturantes que hoje estão na ordem do dia e à qual não nos podemos abster de dar resposta.

A citação que dá início a este artigo remonta ao século XVIII, não perdendo por tal premissa a sua pertinência no contexto atual, na medida em que o autor prima pelo seu traço de “avant la lettre.

A passagem faz alusão a duas virtudes políticas: o compromisso e a prudência. Este duo de valores é apresentado pelo autor como a forma séria e sensata de estar na vida pública.

Portugal, inserido no espaço euro-atlântico, país à beira mar plantado, embora com delonga significativa, é atingido pelas crises e problemas inerentes ao regime democrático. Como bons cidadãos lusos, alheios ao conceito de antecipação e preparação, e fervorosos adeptos do “deixa andar” pouco ou nada tendemos a fazer para consolidar a democracia e a munir de coletes de força contras as demais ameaças.

Nos idos do seu cinquentenário, a democracia percebeu que, algo tão fatal quanto o destino, seria a chegada de um fenómeno a que foi atribuído o nome poético de “populismo”. Tal como a morfologia permite depreender, é um movimento cuja essência se resume à oposição do “populus” às elites que, tornou irrevogável o processo de metamorfose e reconfiguração da arquitetura política de países nos cinco continentes e que sumariando

Os porta-vozes dos fenómenos assumem-se como o remédio infalível para os males da pátria enquanto aqueles que se propõem a opor capitulam em si mesmo o monopólio de os males.

O termo domina as manchetes jornalísticas, debates e conversas de café e, em virtude de ser pouco adepta da espuma dos dias não me debruçarei sobre a sua análise, colocarei no centro da reflexão os moderados e o seu papel enquanto fiéis guardiões do alicerce do regime: a liberdade.

A missão dos moderados é infindavelmente exigente e complexa e a dimensão dos problemas que assolam o regime é diretamente proporcional à sua disposição para sair dos gabinetes e recusar ficar de braços cruzados perante os perigos que se avizinham no horizonte. A incompreensão face ao comportamento exótico dos eleitores evidencia o profundo desconhecimento da realidade e é o reflexo de forças políticas que, quando confrontadas com a escolha entre a realidade e a ficção, optam pela segunda.

A postura do executivo português ilustra na perfeição o que não deve ser feito: dividir o tabuleiro político nacional em dois em que de um lado reina o magnânimo e o virtuoso, que se opõe ao outro que reúne em si mesmo a causa de todos males.

Para que a democracia não seja capturada por trevas antidemocráticas o fosso entre “nós” e “eles” tem de ser transposto. A realidade assim o exige. Nenhum quadrante político proclamatoriamente se deve julgar dona do monopólio de defesa da democracia e conquistas a ela inerentes.

Projetos políticos que não se enquadram num plano moderado parecem aos olhos de muitos longínquos, embora o seu triunfo tenha tido lugar quando, passo a passo, medida a medida, sob um manto de leviandade se foram abrindo precedentes. Cada precedente inaugurado é uma fissura no regime gerado e um passo dado em direção à destruição do tecido democrático.

Uma curta observação da realidade torna evidente aos olhos de todos o desvanecimento do horizonte moral comum no xadrez político nacional. Com este chavão pretendo aludir para o conjunto de valores e princípios éticos que orientam o horizonte de ação das lideranças e cuja prossecução é tida como imprescindível.

No pós 25 de abril, os partidos do arco da governação (lógica quebrada em 2015 com a “queda do muro” à esquerda) – CDS-PP, PS e PSD-PPD – abraçaram o florescimento do regime democrático com altíssimas expectativas no futuro que este lhes auguraria e com as energias alentadas pelo apreço mobilizador em torno de um projeto coletivo de país.

Está no código genético dos fundadores do regime o reconhecimento do peso do legado que carregam, embora alguns insistam em se olvidar do seu lugar e papel no mapa político.

O menor denominador comum no pós 25 de abril era vasto: a defesa da liberdade, justiça, direitos individuais e dignidade humana.. O alcance de uma sociedade alicerçada na defesa desses valores assentava no pressuposto de que existiam princípios que constituíam um “common ground” entre as demais forças políticas e que o diálogo devia ser o catalisador da mudança.

Embora a observação da realidade pareça indicar o oposto, a política é nem mais nem menos do que a arte de negociar.

Negociação não é sinónimo de inexistência de liderança ou subtração dos interesses nacionais da equação decisória como a doutrina Thatcheriana em tempos alvitrava. A riqueza da democracia assenta no pluralismo e pluralidade de perspetivas, ângulos de visão.

Em prol de um fim último é inevitável a concessão de cedências, prática que assenta numa lógica de reciprocidade.

A negociação e o consenso propiciam o cruzamento de fronteiras ideológicas, a procura de afinidades nas diferenças e de convergências nas divergências. A ideia de que o telos dos partidos é meramente um meio através do qual o poder é preservado é uma profunda desvirtuação do próprio conceito de poder.

Num contexto como o atual, na presença de uma maioria absoluta, é imprescindível a existência de pontes comunicacionais entre o partido da governação e os partidos da oposição, que permitam que o clima político se torne mais ameno e a realização de reformas exequíveis.

Os tijolos do muro derrubado há oito anos foram agora mobilizados para a construção de um outro que divide a esquerda e a direita. A negociação, enquanto processo no qual se expõem os antagonismos e as concordâncias, é nada mais do que uma manifestação da saúde democrática e não um obstáculo à prossecução de um projeto de país que, lamentavelmente, parece ser inexistente na conjuntura vigente.

A maioria absoluta conquistada nas urnas em janeiro do passado ano traçou uma trajetória de dialogante a arrogante fazendo inflamar aquilo que se propôs a dizimar: os populistas.

Somam-se os projetos de lei chumbados da oposição a que se procedem iniciativas do mesmo teor, espelhando assim o estabelecimento de fronteiras rígidas e delimitação do horizonte de negociação – prática cara a regimes alheios a práticas democráticas.

Mas afinal não é na moderação que está a virtude? Os problemas nacionais só são resolvidos quando é colocado em marcha o binómio inteligência – razão e a ideologia é colocada na gaveta.

Para figuras de referência que participaram, testemunharam e intervieram em períodos decisivos da construção do regime democrático em que se incluem Mário Soares, Francisco Sá Carneiro, Francisco Lucas Pires e Diogo Freitas do Amaral, era indubitável a seguinte premissa: o valor primordial a preservar e pelo qual décadas se bateram era a democracia.

Para figuras de referência que participaram, testemunharam e intervieram em períodos decisivos da construção do regime democrático em que se incluem Mário Soares, Francisco Sá Carneiro, Francisco Lucas Pires e Diogo Freitas do Amaral, era indubitável a seguinte premissa: o valor primordial a preservar e pelo qual décadas se bateram era a democracia.

Foi por estes entendido que, a combinação equilibrada entre a estabilidade política e o crescimento económico, sem deixar de lado o compromisso com a justiça social, só seria viável em Portugal se a governação se inserisse num plano moderado.

Os que hoje ousam olvidá-lo desonram o legado herdado dos fundadores do regime cuja ação se pautava pela ética da convicção e da responsabilidade.

É clarividente que a política é um espaço onde tem a lugar uma luta titânica entre o bem e o mal e que a prossecução de um projeto em detrimento de outro implica o triunfo nas urnas e, em jeito de corolário a derrota daquela que a esta se opôs. Apesar disso, é indispensável que exista um consenso entre as forças democráticas sobre a natureza e telos do poder: tem de estar ao serviço, subordinado a propósitos claros e não pode ser usado como um fim em si mesmo.

O legado do passado consiste na preservação da herança democrática e inerentes conquistas, sem obliterar a fragilidade e reversibilidade das mesmas. É imprescindível para tal que as forças democráticas resistam à tentação de usar e sacrificar o poder por objetivos menores.

A bússola política nacional há muito que perdeu o norte e o alfa e ómega da equação política desvirtuam diariamente o legado Burkeano.

Não ousem os democratas conferir opacidade a uma linha que há cinco décadas se tornou nítida. É cedo para saber o desenlace que a inação propiciará, não obstante um axioma é certo: nada ficará como dantes.