7 minutos de leitura

Idealmente, a cerimónia comemorativa do 25 de Abril teria sido o ponto de encontro entre partidos. Ter-se-iam sentado à mesa e, como uma família feliz num almoço de domingo, teriam recordado com o mesmo fervor uma memória venturosa. As circunstâncias não o permitiram e, nem nesta data fomos poupados de desavenças entre irmãos. Não obstante a veemência com que defenderam os valores de abril, é inegável que todos eles, a bem ou a mal, avivaram a memória dos portugueses sobre a preciosidade e volatilidade da liberdade.

Tal como nos tem habituado desde sempre, o nosso Presidente apresentou-nos um discurso repleto de eloquência e significado, mesmo que extenso e, em certas partes, demasiado intelectualizado. À medida que abordava as questões mais acutilantes da descolonização e da presença do “simbólico representante de uma pátria-irmã”, Marcelo ia romantizando o “supremo senhor do 25 de Abril”: o Povo.

Além disso, deu atenção a quem acha que “falta cumprir Abril” e que se deveria ambicionar mais e melhor. A essas pessoas ele relembra que essa mesma insatisfação, não acomodação e exigência crescente são fruto desse momento de 1974, mas também que só através da democracia se tem a liberdade para escolher outro caminho.

Já Augusto Santos Silva cantou-nos uma Ode ao tempo, este que, como referiu, nos foi libertado a 25 de Abril. Num instante, “o futuro deixou de reduzir-se à repetição do presente” e passou a estar ancorado à vontade do povo, demonstrando que nenhum poder é eterno, nem escapa à provação do tempo e à contestação popular. O 25 de Abril ofereceu-nos a transitoriedade do poder, a possibilidade de ‘bater o pé’ e de ter uma palavra a dizer relativamente ao rumo político do país. Apesar do carácter cíclico do tempo democrático, Santos Silva realçou que o “tempo dura”, o que é essencial para o processo democrático. Só a durabilidade do tempo permite a fiscalização, a maturação de propostas e, com elas, a decisão informada do povo.

André Ventura, por sua vez, antes do exercício da sua liberdade de expressão, poderia ter agradecido, religiosamente, aos capitães de Abril. Porém, não teve tempo de o fazer. Achou por bem aproveitar a deixa para condenar os “cravos, celebração e festa num dos momentos mais negros dos portugueses” e prosseguiu a enumerar as razões pelas quais é inútil andarmos de cravo ao peito, defendendo que “de nada vale celebrar Abril” se não for concretizado aquilo que os portugueses mais necessitam. E aquilo que os portugueses mais necessitam é comida na mesa e o fim da corrupção.

A visita de Lula da Silva foi, então, uma doce circunstância, uma eventualidade frutífera ao discurso do líder do CHEGA. De súbito, os capitães de Abril foram substituídos por líderes corruptos e a sua prestação de serviços à comemoração da liberdade e da democracia resumiu-se ao mote “democracia sim, corrupção nunca mais”. Com isto, Ventura dá continuidade à perseguição ao Presidente da República Federativa do Brasil, que principiou na sessão solene de boas-vindas ao mesmo, ao empunhar cartazes que defendiam que “o lugar do ladrão é na prisão”.

A ofensa pessoal ao líder brasileiro, que visitava Portugal enquanto representante de uma ‘pátria-irmã’ e não enquanto um líder cuja governação política é louvável, incitou Santos Silva a abandonar a imparcialidade que o seu cargo exige e a repreender o CHEGA. O “Chega de insultos, chega de degradarem as instituições, chega de porem vergonha no nome de Portugal” do Presidente da Assembleia da República foi aplaudido de pé pela maioria dos presentes e fez-se ouvir na sala o lema “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais”.

Com isto, e porque nos foi concedida a liberdade para o fazer, permita-nos expressar a nossa discórdia relativamente à Epístola de Ventura à Liberdade. O simbolismo do 25 de Abril não é passível de ser diminuído por falhas no sistema democrático e, quem o afirma, das duas uma: ou não sabe a História, ou prefere contá-la à sua maneira para servir os seus propósitos. A polarização do discurso de André Ventura, perspetivada, erroneamente, como um ato de coragem e de bom senso por muitos, revela, somente, um patriotismo fingido de quem não é capaz de reconhecer a importância da História do país, nem de respeitar as instituições democráticas no dia em que, supostamente, devia celebrá-las.

Não nos deixemos cair na tentação de entrelaçar as mãos com os autoritários que nos sussurram ao ouvido aquilo que queremos ouvir, mas que não são suficientemente habilidosos na defesa de valores democráticos. Deploravelmente, a defesa da liberdade e da democracia não foi uma prioridade para Ventura. E sim, apesar de (extremamente) imperfeita, enquanto vivermos em democracia teremos sempre motivo para cantar de cravo empunhado ao peito.

Felizmente, outro dos discursos que marcou este dia de celebração, desta vez pela positiva, foi o do líder do LIVRE. Ainda que possua um peso numérico mínimo no Parlamento, as suas palavras demonstram algo diferente dessa realidade: “A nossa democracia não só não está garantida, como vive o momento de maior risco à sua existência desde o período pós-revolucionário”.

Rui Tavares confessou que a democracia não era sinónimo de perfeição e que esta estava cada vez mais perto de se aviltar e esvaziar. Acima de tudo, alertou que o risco de se perder tudo o que conquistamos em conjunto nestes 49 anos reside, não nos ‘novos autoritários’, mas naqueles que lhes quiserem dar a mão. No entanto, numa nota mais positiva, recordou que os democratas são muitos mais que os seus inimigos e que “não voltarão”.

Ainda que se diga que não voltam, pode-se muito bem ver que já andam por cá. Outro acontecimento que, infelizmente, manchou este Dia da Liberdade foi a manifestação de cravos negros protagonizada pelo partido CHEGA. Segundo os próprios, isto seria uma forma de protesto contra a presença de Lula da Silva nas celebrações desta data, ao que André Ventura ainda acrescentou o desejo de se montar a “maior manifestação de sempre contra um dirigente estrangeiro” em Portugal.

Curiosamente, em vez de marchar e cantar com os restantes partidos para festejar este aniversário, Ventura e companhia decidiram começar a festa antes da hora marcada. Quanto ao número de participantes, pode-se afirmar que não atingiu esse objetivo, ainda que estes “verdadeiros defensores da democracia” tenham multiplicado por dez o resultado e mentido à imprensa.

No que toca à mensagem a passar, não foi aquela que nos chegou à caixa de correio (para mal dos nossos pecados). É evidente que se pode dizer que foi organizada uma (firme) demonstração da sua posição, mas há que pensar na possibilidade de isto ser um aparato. De facto, acaba por ser irónica a convocação de uma manifestação no dia 25 de Abril, mas igualmente preocupante que tenha acontecido com tanta naturalidade ou liberdade e que possa vir a ser um ‘hábito’ no futuro.

Quando Ventura surgiu diante da sua plateia, depois de se desprender dos carris da Assembleia, a paisagem mudou drasticamente. De repente, os cartazes de protesto passaram a ser meras cartolinas, os cânticos deixaram de se assemelhar a cassetes e o alvoroço tornou-se ensurdecedor e uníssono. Não estavam lá para protestar fervorosamente contra Lula, estavam lá para apoiar cegamente o seu líder.

Mediante todo o ornato que circundou o CHEGA nas celebrações da liberdade, o Primeiro-ministro reagiu criticando fortemente a atenção mediática dada a este partido, que considera ser “desproporcionada àquilo que eles representam na nossa vida coletiva” e “um dos maiores perigos que existe para o futuro da democracia”.

António Costa comentou, ainda, a atitude do CHEGA na sessão de boas-vindas a Lula da Silva, reiterando que, mais uma vez, este demonstrou aquilo que é: um partido que “não tem respeito pelas instituições”, que “não se sabe comportar civilizadamente à mesa da democracia” e que “não sabe respeitar a nossa história e aquilo que é a nossa relação com os nossos povos irmãos”.

Seguramente, este 49º aniversário do 25 de Abril marcou uma mudança no paradigma nacional de como se encara esta data. Seja na retórica dos partidos, nas festividades do povo ou na imagem dada pela comunicação social. Para uns tratou-se de um indício trágico, para outros pode, possivelmente, ter servido de bom presságio e, ainda, para uns quantos nada de outro mundo. Todavia, é a partir destas convicções que se retiram as ilações necessárias para o futuro.

Deu-se o caso de um partido conseguir colocar-se, com sucesso, no centro do sistema e discurso políticos e, até, do debate mediático no dia da celebração da liberdade e democracia portuguesas. Ao se realizarem as peripécias mais reprováveis na casa da democracia e depois de se ter ouvido o aclamar por um ‘Rei Sol’ nas ruas da capital, talvez seja difícil sair-se ileso e indiferente face a isto.

Hodiernamente, temos assistido ao crescimento da onda de apoio das forças que patrocinam estes atos pouco dignos e há cada vez mais cidadãos a reverem-se neste tipo de discurso. Terá isto sido mais uma vitória para estes conservadores e patriotas que não aceitam bem a crítica? Lamentavelmente, sim. No entanto, uma coisa é certa: ao defendermos este tipo de valores, não nos encontramos do lado de Abril.

É fundamental perceber e arranjar uma forma de se encarar este elefante na sala, de preferência antes da celebração do 50º aniversário da Revolução dos Cravos, para não se assistir a algo semelhante à deste ano. Até lá, os mais ‘cansados de Portugal’ rejubilar-se-ão em saber que certas forças políticas certamente os irão descansar. Já o povo, esse terá de confiar na democracia, defender a liberdade e preocupar-se em não deixar os cravos tingirem de negro.