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Nos mais de três séculos de existência histórica, a moderação raramente fez parte do léxico francófono. O inconformismo e a aversão a reformas do povo francês é remota, as origens do fenómeno são inteligíveis através de uma retrospetiva histórica.

Embora os primeiros laivos de intemperança sejam anteriores à Revolução Francesa, este evento disruptivo, que alterou profundamente o curso da história mundial, contribuiu fortemente para o efeito. Em defesa da liberdade, igualdade e fraternidade, esta revolução propiciou o florescimento de democracias alicerçadas no respeito pelo indivíduo enquanto sujeito de direitos inalienáveis. Volvidos mais de dois séculos a França continua a ser uma nação inconformada e que não se verga perante o poder político, os últimos meses têm sido elucidativos disso mesmo.Na sequência de uma decisão que pecou pela falta de consenso nacional, uma vez mais, tal como em 1789, a sociedade civil e o poder político estão em dissonância.

É imperativo que se contextualize a decisão que está na origem da forte contestação na atual conjuntura, embora esta contextualização não justifique a abordagem escolhida pelo executivo e pelo presidente francês para solucionar o problema.

Grande parte dos países europeus enfrenta um inverno demográfico. Nas últimas décadas tem ocorrido a inversão da pirâmide etária - alargamento do topo e estreitamente das bases - devido a um profundo envelhecimento populacional e incapacidade de renovação geracional. A França não é exceção à regra, também dentro das suas fronteiras é fortemente afetada por este problema. Dados de 2020 revelam que o país gasta 38% do seu PIB em pagamento de pensões e prestações sociais. Importa lembrar que, no panorama europeu, a França se encontra entre os países com a mais baixa idade de aposentação - 62 anos. A combinação destes fatores configura um sério problema de sustentabilidade do sistema de pensões e equilíbrio das contas públicas. O esforço contributivo tem por base a solidariedade intergeracional, quebrá-la significaria a ruína do contrato social.

Este problema não deve, nem pode, ser desvalorizado pela classe política. É por Emmanuel Macron não o ter feito que se encontra numa encruzilhada que precipitou a sua persona política para níveis de impopularidade que só encontram paralelo no auge dos protestos dos coletes amarelos.

Em resposta ao problema, Emmanuel Macron procedeu a uma reforma do sistema de pensões: o aumento progressivo da idade da reforma dos 62 para os 64 anos até 2030, ao ritmo de três meses por ano, com início a 1 de setembro de 2023. Os regimes excepcionais serão também alvo de uma profunda transformação. O cerne da contestação não se extingue no desacordo face à medida, estende-se ao enquadramento jurídico francês que permite a promulgação de leis sem que estas sejam alvo de votação formal na Assembleia. O executivo francês recorreu ao artigo 49.3 da Constituição Francesa, que prevê a aprovação de uma lei sem que esta seja levada a votos na câmara baixa do Parlamento francês.

O recurso a este instrumento constitucional não é inédito, esta é a centésima vez que é utilizado. Porém, o seu uso é desaconselhado pois é percecionado como um mecanismo antidemocrático, uma forma de imposição de uma vontade unilateral contra o desejo dos cidadãos. O executivo e o presidente franceses usaram este mecanismo, pois estão conscientes de que, na ausência deste, dificilmente teriam luz verde no Parlamento e, consequentemente, o Governo liderado por Élisabeth Borne teria os dias contados. O recurso ao artigo 49.3 espelha a encruzilhada em que se encontra o xadrez político francês: o executivo manifesta dificuldade em estabelecer pontes com a oposição em prol da aprovação de medidas. Paralelamente, a oposição fecha-se sobre si mesma e demonstra pouco apreço a propostas para lá da sua bolha ideológica, não apresentando ela mesma soluções para os desafios que o país enfrenta. A reação dos franceses apanhou de surpresa apenas aqueles que a história do país não conhecem: os ex-detentores das chaves do Palácio do Eliseu, Jacques Chirac e Nicolas Sarkozy, durante os seus mandatos presidenciais, demonstraram vontade em reformar o país e imagine-se o resultado da investida? Insucesso, forçando os seus promotores a recuar.

Em 1995, Jacques Chirac falhou em fazê-lo. Quinze anos depois, Nicolas Sarkozy, apesar da forte resistência da sociedade civil, conseguiu elevar a idade mínima de reforma dos 60 para os 62 anos - enquadramento legal vigente. A proposta inicial de Macron apontava para os 65 anos, porém foi dado um passo atrás para os 64. Emmanuel Macron pecou por excesso de prudência, tivesse o recuo tido lugar no período pós contestação social teria dado um sinal positivo à sociedade civil e quiçá ter-se-lhe-iam sido poupadas algumas críticas de despotismo.

Élisabeth Borne, primeira-ministra francesa, aquando do anúncio da decisão na Assembleia Nacional, viu o seu discurso ser interrompido por membros das bancadas do hemiciclo. Os ânimos pouco tardaram a exaltar-se: a esquerda radical entoou a Marselhesa numa tentativa de impedir a progressão do discurso, simultaneamente, a extrema-direita gritava em plenos pulmões “Demita-se!”. Apesar de aprovado no Senado com 193 votos favoráveis, os deputados da oposição prometem não dar tréguas, não só no Parlamento, através da apresentação de moções de censura, bem como nas ruas. Cidades francesas como Paris, Lyon e Bordeaux têm sido palco de protestos em que se somam os detidos e os estragos provocados na via pública. A grandiosidade de praças parisienses como a “Place de Invalides” e “Place d’ Italie”, deram lugar a cenários de protestos como há muito não eram vistos na capital francesa.

A popularidade do presidente, que nunca atingira valores excelsos, está hoje pelas ruas da amargura. Apesar disso, o executivo e o presidente permanecem inflexíveis. Macron fundamenta a sua posição alegando privilegiar o interesse geral do país: “Cette réforme n’est pas un luxe, ce n’est pas un plaisir, c’est une nécessité”. O recurso a este poder constitucional augura pouca a favor do atual executivo que, por não deter maioria, necessita de possuir parceiros de coligação, entre os quais o partido “Les Républicains”. Paralelamente, inflamou os extremos que este se propôs a exterminar, tornando assim mais provável a entrega das chaves do Palácio do Eliseu a políticos cuja ação não se encontra enquadrada num plano moderado.

À data da escrita desta peça, o Conselho Constitucional ainda não se pronunciou em relação ao tema, fá-lo-á a 14 de abril. Este órgão procederá a uma análise ao projeto de lei e verificará em que medida esta reforma está de acordo com o enquadramento jurídico francês.

Os franceses, em defesa dos seus direitos, realizam greves de forma ininterrupta há largos meses. Apesar de a existência de uma sociedade civil ativa ser uma componente importante de uma sociedade democrática, a não apresentação de soluções para o problema e assunção de posturas profundamente insensatas corrompe o motivo da contestação.

No final, a razão não pendeu para nenhum dos lados. O poder político perdeu a razão por não ver meios para atingir os fins, paralelamente, a sociedade civil, com o recurso à força, ultrapassou os limites do razoável e desvirtuou a causa defendida. Os mandatos presidenciais franceses de Emmanuel Macron têm sido pautados por constante tensão social, de crise política em crise política.Após um vasto número de moções de censura levadas a votos na Assembleia Nacional pelo “Rassemblement National”, liderado por Marine Le Pen, e pela frente de esquerda, chefiada por Jean-Luc Mélenchon, Emmanuel Macron sobrevive passando entre os pingos da chuva, porém, desta vez a tempestade parece ter vindo para ficar.

Importa ainda lembrar que esta proposta se encontrava no programa eleitoral levado às urnas quer em 2017, quer em 2022. Em 2017, aquando da sua candidatura ao Palácio do Eliseu, Macron assegurou que a sua ação focar-se-ia no consenso. Seis anos depois inverteu o discurso e a estratégia e, a todo o custo, fez o que precisava de ser feito. Embora o seu espírito reformista seja elogiável, numa era em que a popularidade parece ser o fim em si mesmo, não ver meios para atingir os fins é uma abordagem que peca pela falta de democraticidade.

Macron, a quem a inteligência não falta, sabia perfeitamente que uma reforma de tal envergadura dificilmente avançaria sem enfrentar protestos massivos dada a profunda aversão do país a reformas e que o recurso a este mecanismo constitucional seria combustível para os extremismos, porém, o conhecimento de tais premissas não inibiu a sua ação. Embora reconheça a imperatividade de proceder a mudanças estruturais, o recurso a este artigo da Constituição Francesa configura a abertura de um precedente de profunda gravidade, cuja repetição está longe de ser desejável. Uma decisão de tamanha importância para o futuro coletivo de uma nação tem, inequivocamente, de ser resultado de um debate sério e de cedência das partes, não a expressão de uma vontade unilateral. Uma democracia madura exige que assim o seja.

É inegável que a realização de reformas tem associado um grau de incerteza, no entanto, a sua não realização não as torna menos necessárias, pelo contrário, faz com que no momento em que a coragem política não faltar, o grau de intervenção tenha de ser mais acentuado.

Negligenciar a soberania popular herdada da revolução francesa é um indício da falta de vitalidade democrática do país, porém, sendo a coragem um atributo que pouco paira na classe política, Macron mostrou eximiamente qual tem de ser o princípio orientador da ação política - o interesse geral do país. A ação de Macron, cujo estilo de liderança frequentemente é equiparado ao do rei Luís XIV, expôs um dilema para a democracia francesa: reformar e desagradar ou adiar o inevitável e lidar posteriormente com as consequências da inação?