6 minutos de leitura

Há 50 anos realizou-se a primeira chamada por telemóvel, há 3 décadas a internet tornou-se acessível ao público e na atualidade vemos cada vez maiores e mais céleres mudanças na tecnologia. Enquanto jovem que conviveu com um mundo informatizado desde nascença, admito experienciar uma certa dificuldade em entender o grau e rapidez da evolução tecnológica, por vezes esquecendo-me que para algumas gerações pode ser insólito pagar um café com um toque de relógio ou através de uma “fotografia” no telemóvel.

Estas inovações são vistas, por alguns pensadores (idealistas), como fruto natural do Homem e do seu instinto para a evolução e recentemente têm vindo a adquirir dimensões tanto fascinantes como intimidantes. A Inteligência Artificial é um notável exemplo do esplendor tecnológico, assim como pode ser simultaneamente um alerta para os cuidados a ter com este frenético desenvolvimento. Tendo em conta o constante e fugaz aperfeiçoamento destes sistemas é necessário atuar para garantir que certas fronteiras não sejam ultrapassadas.

É aqui que nos apercebemos que estamos perante o Kairos, por outras palavras o momento crucial e crítico para agir, que na eventualidade de ser desperdiçado não regressa. Apesar de em grego moderno Kairos (καιρός) significar “tempo” e “clima”, na antiguidade tinha um sentido distinto, ligado à mitologia e correspondendo a um Deus que possuía duas características peculiares: um único tufo de cabelo na parte frontal da cabeça e asas nos tornozelos. Este que ficou conhecido como o Deus da oportunidade movia-se velozmente (daí as asas) e quem o quisesse interpelar tinha de o agarrar pelo seu pequeno cabelo; acontece que devido à sua velocidade só havia um curto espaço de tempo em que éramos capazes de o fazer, falhando iríamos ficar a olhar para a sua nuca calva sem esperanças que ele retornasse.

Kairos é acima de tudo uma ode ao presente, uma vez que nele não se reflete de nenhum modo nem o passado, nem o futuro; é a capacidade de tomar uma ação imediata e mudar o rumo dos acontecimentos. Transpondo este conto mitológico para a realidade verificamos que somos confrontados com esta figura mítica várias vezes ao longo da nossa existência, momentos-chave em que definimos, mesmo que ingenuamente, o nosso sucesso ou então fracasso.

Pode-se dizer que ter o reflexo para agarrar o topete de Kairos é uma virtude que deveria ser possuída por todos os líderes, de modo a que estes evitassem desastres, de guerras a crises económicas, de demissões de membros do governo a indemnizações excêntricas em empresas que só mesmo as criaturas mitológicas sabem se ainda são públicas ou privadas… Naturalmente não é simples adquirir esta capacidade ou ser exímio nela, uma vez que requer de nós uma atenção redobrada a tudo o que nos cinge.

Entende-se, então, algo fundamental, a necessidade de uma meticulosa observação da nossa conjuntura, de modo a estarmos continuamente preparados a agir, não permitindo assim o desperdício de oportunidades ou o aparecimento de problemas. A Inteligência Artificial requer isto de nós, um controlo constante para garantir que os benefícios inerentes a ela são devidamente aproveitados e que possíveis adversidades são reprimidas.

Recorte de ecrã da interface da inteligência artificial ChatGPT, desenvolvida pela OpenAI. Fotografia: OpenAI, via Wikimedia Commons

Com o aparecimento e crescente acesso aos chatbots, programas que utilizam Inteligência Artificial e processamento de linguagem natural para conversar e responder aos seus usuários como se fossem humanos, surgiram questões das mais variadas áreas, como a privacidade, o plágio no ensino, a desvalorização (ou morte, caso pretendamos ser mais dramáticos) do processo criativo artístico e da escrita, a perda de postos de trabalho em vários setores, particularmente o jurídico e o informático, entre outros. Alguns dos mais conhecidos modelos de linguagem deste tipo são o ChatGPT-4, LaMDA, Bard ou o Bing, programas que atingiram dimensões colossais em curtos prazos de tempo, dos quais se destaca o ChatGPT da Open AI, que tem vindo a ser alvo de elevado mediatismo devido ao seu exponencial crescimento, tendo adquirido dezenas de milhões de utilizadores logo nos dois primeiros meses após o lançamento, batendo recordes.

Por mais divertido que seja explorar estes chatbots, quer seja para contemplar a rápida e detalhada capacidade de resposta acerca do mais variado tema, a criação de códigos complexos ou até a escrita de um discurso ao estilo de Mussolini a rimar acerca de árvores de fruto (sim, mesmo parecendo absurdo é possível), é indispensável compreender algo que Paulo Novais, professor do departamento de informática da Universidade do Minho, afirma “Não estamos a falar de uma super-inteligência (…)”. Estes modelos de linguagem não passam de um instrumento que compila uma avultada quantidade de dados e que os processa com imenso rigor, promovendo assim a eficiência e produtividade, tanto que a Goldman Sachs prevê que o PIB global possa vir a crescer 7% graças a esta tecnologia num futuro próximo.

No entanto, falta-lhes algo crucial que os distingue largamente do raciocínio humano, algo que Noam Chomsky, juntamente com dois colegas, desenvolve no artigo do New York Times “The False Promise of ChatGPT”, onde conclui que “Their deepest flaw [chatbots] is the absence of the most critical capacity of any intelligence: to say not only what is the case, what was the case and what will be the case — that’s description and prediction — but also what is not the case and what could and could not be the case. Those are the ingredients of explanation, the mark of true intelligence.” Dito de outro modo, a inteligência encontra-se em gerar deduções criativas (conjecturas), tendo por base a criação de explicações possíveis através da constante correção de erros e eliminação dos casos que nos são revelados como irracionais, tudo isto com uma particularidade: a capacidade de distinguir o possível do impossível. A Inteligência Artificial não tem a competência de fazer esta distinção; o ser humano está limitado racionalmente nas explicações que pode dar, no entanto uma máquina não possui este filtro, como a sua aprendizagem é ilimitada tanto entende que a Terra gira à volta do Sol, como o Sol gira à volta da Terra, apenas baseia a sua resposta com base em probabilidades (e dados) que variam com o passar do tempo.

Ainda que compreendendo que o Homem difere vastamente destes modelos de linguagem é necessário entender o porquê deste ser um tema de destaque que tem vindo a gerar elevadas contestações, desde as cartas abertas para a suspensão do desenvolvimento de Inteligência Artificial durante 6 meses com o objetivo de criar protocolos de segurança, à legislação da União Europeia nesta matéria.

Arlindo Oliveira, professor no Técnico e presidente do INESC, considera estes chatbots “geradores estatísticos de palavras” e tranquiliza os leitores dizendo que o risco de substituição maciça do Homem por máquinas e da consciencialização destas é um cenário longínquo, apesar de plausível, e que no momento em que vivemos os benefícios desta tecnologia superam os riscos. No entanto, Francisco Mendes da Silva, advogado e ex-deputado do CDS-PP, revela dados alarmantes afirmando que “Os investigadores da Inteligência Artificial acham que o seu trabalho tem, em média, 10% de probabilidades de conduzir à extinção da Humanidade” e mostra-nos os perigos das enormes recolhas de dados por parte de governos que mais tarde podem utilizá-los para desenvolver os seus modelos de linguagem. A China é um excelente exemplo, uma vez que possuiu volumes gigantescos de informação (graças às suas aplicações mais conhecidas, como o TikTok, Shein, entre outros) e já demonstra querer manipular a Inteligência Artificial de modo a que esta não contrarie os princípios do Partido Comunista Chinês.

‘Dyscovery One’, a nave espacial comandada por HAL9000 em ‘2001: Odisseia no Espaço’, de Stanley Kubrik. Fotografia: Metro-Goldwyn-Mayer, Public domain, via Wikimedia Commons

Torna-se difícil saber qual dos lados estará mais próximo da realidade, mas uma ilação é óbvia. Estamos perante um momento de revolução tecnológica nunca antes visto, em que pela primeira vez o desenvolvimento lentamente deixa de ser controlado na íntegra pelo Homem. Resta saber se Kubrick acertou em “2001: Uma Odisseia no Espaço” ou se esta permanecerá sempre como mera obra de ficção. De qualquer modo, entre esperar para ver ou agir é melhor tomar precauções e interiorizar algo - este é o nosso Kairos.