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No dia 28 de Março de 2023, pela manhã, um homem de estatura média apronta-se para sair de casa rumo a mais uma aula de português no Centro Ismaili. Entre as páginas dos seus livros, escondia uma faca de cozinha, e sendo membro assíduo do grupo, ninguém presumiria o pior. De faca em punho, atacou o seu professor, que se encontra hospitalizado, e seguiu para o piso superior, onde vitimizou Mariana Jadaugy de 24 anos e Farana Sadrudin, de 49, respetivamente, suas professora e colega. Todos trabalhavam no apoio aos refugiados. No decurso desta ação, terá ainda recebido uma chamada cujo conteúdo é desconhecido. Felizmente, as forças de segurança atuaram um minuto após o alerta, imobilizando o agressor, Abdul Bashir, que seguiu para o hospital, baleado nos membros inferiores.

A comunicação social não perdeu tempo a afirmar tratar-se de um “surto psicótico”, tese que rapidamente caíra por terra devido à premeditação do ataque. O Presidente da República colocou a hipótese de um eventual problema de guarda parental, demonstrando, assim, desconhecimento absoluto do assunto. Em pleno canal aberto, o Ministro da Administração Interna apelida o homicida de “vítima”. Esta ânsia por parte das respetivas instituições – mídia (comunicação social), Presidente da República e Governo - compreende-se apenas à luz da necessidade de acalmar os ânimos. Contudo, este episódio reflete características muito comuns a atentados que ocorrem na Europa e pelo mundo. Desde logo, deu-se numa instituição religiosa, no Centro Ismaili, frequentado pela corrente mais moderada do islamismo e que tem sido frequentemente alvo de acontecimentos similares. Além do mais, o assassino é um refugiado do Afeganistão, país cuja população é 85% sunita. Daí que motivações de natureza sectária não pudessem ser descartadas, tendo inclusive saído notícias a referir que o autor (Abdul Bashir) estaria a ser alegadamente chantageado pelos Talibãs, estando vulnerável a ameaças à sua família na sua terra natal. Salienta-se que o ataque foi deliberadamente dirigido contra as mulheres, algo usual neste tipo de incidentes. As recentes notícias de que Abdul poderia estar ligado ao incêndio que vitimizou a sua mulher na Grécia adensam a hipótese de motivação religiosa. Tudo isto apenas demonstrou a incapacidade e, talvez, uma feliz falta de experiência das instituições nacionais em lidar com casos desta natureza.

A tese mais corroborada é a de que Bashir sofre de diversos problemas psicológicos ligados à sua triste história de vida. Pai de três filhos, fugido da guerra em busca de uma vida melhor - pelo caminho perdera a sua mulher – consegue o estatuto de refugiado em Portugal. A veracidade destes factos não se coloca em causa. O problema surge com a precipitada narrativa de vitimização, motivada pelas redes sociais, onde tudo se quer saber no imediato, razão pela qual surgiram especialistas em horário nobre a traçar o perfil psicológico do assassino, apenas baseado em notícias, sem nunca terem interagido com o mesmo. Assistiu-se à desinformação massificada, incluindo as infelizes declarações de Marcelo Rebelo de Sousa e de José Luís Carneiro. Se se cair na imprudência de rotular de “vítima” quem comete tais atrocidades, incorre-se num erro fatal: a banalização da atrocidade. Todo e qualquer episódio semelhante não deverá ser amenizado, sob pena da sociedade portuguesa ficar soterrada em falsas expectativas. Se porventura estes episódios forem reiterados, o povo português sentir-se-á enganado pelas instituições, que perderão ainda mais credibilidade. Tudo culminará na proposição de que “todos os refugiados são terroristas”, o que é igualmente falacioso. No entretanto, as verdadeiras vítimas serão esquecidas.

Abdul Bashir era acompanhado no Centro Ismaili, onde recebia formação e apoio, tanto alimentar como psicológico. Portugal tem fama de país acolhedor, ou pelo menos, assim nos concebemos. Diversos programas, promovidos pelo Alto Comissariado para as Migrações, pelo Centro Ismaili, ou ainda pela Fundação Calouste Gulbenkian, procuram integrar refugiados na sociedade portuguesa. Todavia, nos tempos modernos essa tarefa tornou-se mais exigente e complexa. As telecomunicações permitem que famílias inteiras, espalhadas pelo globo, mantenham uma interação diária. Trata-se, por um lado, de algo positivo do ponto de vista humano, mas por outro, dificulta a integração dos refugiados na sua nova sociedade. Se um indivíduo suprime a sua necessidade social através de um ecrã, não se sentirá forçado a relacionar-se com o desconhecido. A proliferação da língua inglesa também é um fator impeditivo da integração, permitindo fazer-se vida sem nunca aprender a língua materna do país de acolhimento. Quando a imigração se massifica formam-se grupos étnicos, pequenas comunidades que desincentivam fortemente a integração cultural. Estando mais a ocidente do que países como a Grécia e a Itália, e não sendo uma poderosa economia como a francesa ou a alemã, Portugal pouco atrai quem busca uma vida melhor. O próprio Bashir viu a sua ida para a Alemanha negada. Portugal tem, até à data, evitado a proliferação da imigração, comparativamente com outras nações europeias. Em França, existem bairros inteiros onde o francês não é falado, e, apesar de situações semelhantes já terem sido vividas noutra épocas, não existia o “fator internet”, nem as comunidades acolhidas eram tão numerosas.

A integração de refugiados nunca foi tão difícil. Não havendo integração, aumenta a possibilidade de haver choque cultural, ou “civilizacional” como diria Samuel Huntington. No caso em apreço, pouco se poderá apontar de insuficiente ao processo de integração de Abdul, fruto do seu acompanhamento diário e acesso a educação e serviços sociais. Não se sabendo os verdadeiros motivos do ataque, restará esperar que vença a tese de que se tratava apenas de um homem que sofria de distúrbios psicológicos. Ainda assim, o medo de possíveis atentados terroristas, como aqueles que se verificam na Europa, entranhar-se-á na população. A desconfiança inicial, transformar-se-á em medo, o medo em ódio, e o ódio em violência.

Os países Europeus não escondem o seu interesse em receber imigrantes e refugiados, pois os benefícios económicos gerados são inegáveis, principalmente para colmatar a crise dos sistemas de pensões resultante do progressivo envelhecimento. Por conseguinte, se há uma necessidade económica que justifica a sua existência, teremos de estimular a sua integração de modo a evitar os eventuais choques culturais. Em Portugal, existem diversos programas governamentais e da sociedade civil direcionados neste sentido. Somos, de facto, um país acolhedor. Mas com o aumento das quotas de imigrantes e refugiados, tais mecanismos mostram-se cada vez mais insuficientes. O país encontra-se, portanto, num impasse, “na ponta de uma navalha”. Restringir as entradas permitiria uma integração mais lenta e progressiva, evitando que comunidades fechadas fossem formadas e que potenciais consequências de um choque cultural se materializassem. Garantir-se-ia, ademais, que todos os refugiados receberiam o devido apoio. O impacto económico seria sentido. Em contraste, uma abertura mais acentuada das fronteiras resulta numa incapacidade de coesão e acolhimento de refugiados e imigrantes, tal como a boa hospitalidade exige. As condições oferecidas a Abdul foram louváveis, ainda que não as tenha aproveitado. Não devemos hesitar: quantas mais famílias possam ser ajudadas melhor. Contudo, a massificação não permitirá a todos tal fortuna, por mais esforços que se possam envidar.