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“Educar a alma é senão a arte de quem a viaja e faz conhecer o mundo, ele físico, e depois espiritual”, afirmou Yukio Mishima. E o que poderia eu fazer, senão apagar a minha introdução, que outrora serviu o meu propósito de contar o que experienciei na minha viagem à Dinamarca e Suécia, e dar primazia a mais uma tirada esclarecedora de Mishima?

De facto, não pude fazer nada. Mas o Castelo de Kronborg, localizado na histórica cidade de Helsingør, pode servir de perfeita analogia para todas as temáticas que quero abordar. Os vastos ornamentos que compõem a sua arquitetura, destacando-o dos demais castelos dinamarqueses, poderão ser metaforicamente representativos da singular robustez da economia dinamarquesa, entre incêndios e sucessivas reconstruções, transfigurando-se em um passado de progresso. A sua localização, rodeada por água, na ponta extrema da ilha de Zelândia, pode servir de indicativo da prioritária proteção e segurança nacional. E a sua história, que deleita em representações de Hamlet e admite a defesa perante os vizinhos suecos, aufere-nos uma riqueza cultural avassaladora.

Mas vamos por partes.

Segurança

De facto, se existe palavra que adjetivará adequadamente o quotidiano da população dinamarquesa, não pode passar ao lado de - segurança. Segurança esta que não é acompanhada por grandes aparatos policiais ou por uma rígida e autoritária proteção estatal (ainda que todas as ruas estejam devidamente mobiladas com milhares de câmaras CCTV), mas sim, de uma aparente formação cívica por parte da grande maioria dos dinamarqueses. Não sou adepto do discurso falacioso que tenta separar e hierarquizar os “dignos e civilizados” povos do Norte Europeu dos “bestiais e grosseiros” povos do Mediterrâneo. O meu único intuito é o de apenas relatar, sem me elevar a utópicas tiradas de Albert Camus, aquilo que presenciei.

E um bom exemplo disso, foram os inúmeros artefactos da vida diária que fui encontrando nas várias cidades dinamarquesas (e suecas) que visitei. Desde luvas perdidas a relógios sem senhorio, é comum encontrar objetos visivelmente perdidos em qualquer jardim ou outro espaço público, de modo a que, quem os perdeu, tenha a oportunidade de os reaver, caso a memória não lhe falhe.

Poderão perguntar-me: “E Christiania?”. Bem, a própria existência de uma comunidade independente e autogestionada, de nome “Freetown Christiania”, localizada na margem este de Copenhaga, dá-nos a conhecer uma outra faceta da capital, ainda que esta mesma comprove, de certa forma, a interessante teoria de que, por vezes, para o desenvolvimento acontecer, há que existir uma dualidade entre modos de vida e o próprio entendimento de liberdade.

Entrada de Freetown Christiania, Copenhaga. Fotografia: Franklin Heijnen, via Wikimedia Commons

Como objeto de intenção revolucionária (atente-se, de forma interna e nunca de forma externa), esta comunidade estabeleceu-se no princípio da década de 70, autoidentificando-se como uma reação generalizada e ideológica ao modo de vida capitalista, procurando construir um espaço de livre pensamento e ação para as gerações futuras. Até à atualidade, a comunidade tem como principal bandeira a utilização e legalização de drogas leves, como a canábis, partindo de um pressuposto libertário e anárquico. É verdade que a relação entre a comunidade e as forças estatais não tem sido, de modo algum, uma relação carinhosa, e que há uma grande diferença de vivências entre esta e a outra margem de Copenhaga, mas a comunidade persiste e o Estado deixa-a existir com a devida proteção. Por outras palavras, a liberdade existe e, ao que parece, a segurança não é deixada em vão.

Felicidade

A proclamada felicidade, que é internacionalmente referida em estudos e sondagens das mais variadas fontes, não é comprovada através de sorrisos e gargalhadas em praça pública, ou de longos abraços e demonstrativos atos de afeto. A meu ver, é a tranquilidade geral a que os dinamarqueses me acostumaram que expõe essa mesma felicidade. A necessidade do silêncio e a ternura das velas. Um quotidiano aparentemente sem espaço para pressas, buzinas ou frenesim, tornando Copenhaga, ao sabor do luar de sábado, menos movimentada que qualquer cidade portuguesa de média dimensão.

Ou então está, de igual forma, na relação entre liberdade de ação e responsabilidade civil. Claro que a garantia de uma boa qualidade de vida da população é o fator central que permite esta vivência comportamental, mas essa qualidade de vida, por si só, tem que ser acompanhada com pressupostos culturais e contextuais que permitam uma melhor valorização das suas conquistas económicas e sociais. Estivesse eu em Copenhaga, em Roskilde, em Helsingör ou em Hillerød, o comportamento generalizado dos dinamarqueses nunca pareceu mudar, nem comigo, nem com os seus.

Qualidade de vida

Ao conhecer um simpático peruano, ao qual utilizarei a sua alcunha de “Papito” para o mencionar, pude conhecer a vivência diária em Copenhaga (cidade em que trabalha) e Malmö (cidade em que vive) de uma forma muito mais aprofundada e proveitosa.

Perante o testemunho de Papito, pude comprovar a eficácia dos mecanismos estatais sociais. Os dinamarqueses apreciam de tal forma a importância da tributação, que “skat” (“amigo” em dinamarquês) tem a representação homónima de “imposto”, a simbiose perfeita entre a âncora do modelo social nacional e os seus respetivos contribuintes. Uma âncora que representa mais de 50% do PIB nacional, dez pontos percentuais acima da média europeia e mais uns pontinhos que a portuguesa, e que chega a representar mais de 60% dos vencimentos. Mas o segredo está na aplicação desses mesmos impostos, que permite ao dinamarquês comum usufruir de regalias que, para um português, parecem sair de uma representação cinematográfica, como uma licença parental remunerada até 52 semanas, uma ampla gama de benefícios de segurança social, o apoio financeiro ao estudo universitário, entre muitos outros.

Møllestien, Aarhus, Dinamarca. Fotografia: Steffen Muldbjerg, via Unsplash

A Dinamarca é também campeã na transparência pública relativa à aplicação do dinheiro dos impostos, o que torna a relação entre Estado e contribuinte numa relação triangular, entre consciência fiscal, a mobilização no pagamento de impostos e a transparência pública na aplicação dos mesmos. E enquanto somos bombardeados com comentários políticos que remetem para o aumento de salários da classe política, de forma a combater a corrupção, os dinamarqueses parecem discordar fortemente dessa posição. Não só os seus salários estão mais próximos do salário médio de um dinamarquês (comparativamente a Portugal), como as regalias dos políticos são consideravelmente menores que os políticos portugueses.

O modelo político dinamarquês está de tal forma afinado que práticas como o nepotismo e a indicação indevida de cargos é, para falta de outras palavras, residual. Assim como esquemas de corrupção que, apesar de existirem, não chegam à triste exuberância dos ilustres lusitanos.

Ser estético

Na grande maioria das ruas, especialmente em cidades secundárias como Roskilde ou Helsingör, não só a arquitetura e o design das lojas e cafés estavam totalmente integradas na estética local, não destoando do tom comum da cidade, como a maior parte das lojas nem sequer faziam parte de marcas internacionais. Assisti, claramente, a uma enorme valorização da importância de produtos nacionais e do comércio local, onde várias cadeias internacionais, como a Starbucks, foram virtualmente substituídas por cadeias nacionais ou nórdicas (neste caso, pela Expresso House). Se considerarmos que a economia dinamarquesa foi brindada com Lego, Carlsberg, Flying Tiger, Pandora, Maersk, Toms, entre muitos outros exemplos, entendemos plenamente esta cultura de incentivo próprio.

Contudo, também tenho que referir que é impossível classificar singularmente a arquitetura dinamarquesa (até certo, a própria arquitetura nórdica), pois cada rua ou conjunto de edifícios históricos, especialmente na capital, advêm de uma empolgante e peculiar simbiose de estilos. Desde galerias francesas, a canais e edifícios holandeses, passando por bairros semelhantes aos dos alemães, é exótica a avaliação à análise da identidade nacional quando, deste ponto de vista, a mesma parece ser difícil de identificar. A não ser que consideremos ironicamente a CopenHill, um estranho edifício que mistura uma planta combinada de energia com uma pista de esqui, a servir de visão paisagística à infame estátua da Pequena Sereia, como o estandarte da arquitetura dinamarquesa.

Soberania

Esta doce e apurada fábula sobre a grande família dinamarquesa deixa de ser “grande” (em quantidade) à medida que nos vamos distanciando do epicentro hegemónico. Ao contrário da sua vizinha sueca, que foi negativamente afetada pela desequilibrada entrada de migrantes, a Dinamarca dificulta, em vez de facilitar, a sua permanência, como forma de salvaguardar todos os pontos que referi anteriormente, em prol dos seus quase seis milhões de habitantes.

As populações chinesas, indianas, árabes e até sul-americanas têm uma grande dificuldade em se estabelecer em solo dinamarquês. Uma surpreendente exceção é a população nepalesa que reside em Copenhaga. pois como a maioria viveu anteriormente em Portugal e conseguiu obter os requisitos necessários para a cidadania europeia, foi-lhe atribuída uma clara vantagem para poder viver na Dinamarca. Semelhante aos nepaleses, podemos também encontrar uma extensa comunidade argentina que, ao contrário dos vários países sul-americanos, têm uma maior facilidade em obter cidadania europeia.

Um outro exemplo interessante poderá ser o de emigrantes residentes em Malmö, cidade sueca que, além de ficar a poucos quilómetros de Copenhaga, é também uma das cidades com maior número de refugiados da Suécia. Devido à curta distância entre a capital dinamarquesa e a cidade sueca, serve de local de trabalho para uma boa parte da população residente, ou em Malmö, ou nos subúrbios à volta de Malmö, sendo esse o caso do meu mais recente amigo Papito.

Conclusão sem precipitação

Que se desengane quem poderá levar estar observação pessoal para uma proveitosa conceção ideológica de “mundo ideal”, impondo uma rígida dicotomia entre a exemplar perfeição e o perfeito desastre. Todos os países têm a sua negrura, e as realidades distintas de cada soberana comunidade ditam a sua singularidade e complexidade. A Dinamarca não se isenta da natural impossibilidade de alcançar o auge do potencial humano, nem Portugal deverá ser levado com tanto desencanto como, habitualmente, muitos o gostam de fazer.

Praia dinamarquesa. Fotografia: Silvan Schuppisser, via Unsplash

Não porque a nossa comida ou o sol que banha as nossas praias se sobrepõe ao arenque e à gélida Gummistranden, que separa o Mar do Norte do Mar Báltico. Não porque a definição de castelo, na conceção nórdica, não passe de um conjunto de rudimentares palácios e palacetes que, à exceção do majestoso Castelo de Kronborg, ficam atrás da imponente elegância na nossa artística ascendência nacional. Mas porque, tal como os dinamarqueses me demonstraram, a identidade, a segurança e a coesão nacional são os principais pilares de qualquer país que almeje ser verdadeiramente desenvolvido.

Tentarmos copiar, a todo o custo, a identidade nacional e social de um país culturalmente distante, “camaleando” os seus próprios mecanismos e instituições, como se de básica matemática se tratasse, é condenar à falência a nossa própria identidade nacional. O que podemos e devemos fazer é, perante as eventualidades de quem alcançou patamares que, em Portugal, não passam de utópicas e basálticas miragens, sabermos adaptar, para a nossa realidade, os mecanismos institucionais e sociais que possibilitaram aos dinamarqueses ter uma qualidade de vida superior à nossa.