“Santa Emenda”
A well regulated militia, being necessary to the Security of a free State, the right of people to keep and bear arms, shall not be infringed. — IIª Emenda à Constituição dos Estados Unidos
A Segunda Emenda, muitas vezes considerada confusa e antiquada, é uma relíquia do século XVIII que ganhou grande valor entre os conservadores nos anos 80 e recebeu apoio do Supremo Tribunal em 2008. O direito individual à posse de armas, alegadamente protegido pela frase, é para os europeus um dos aspetos mais peculiares da vida americana e que pouco sentido faz nos tempos em que vivemos. Procuro explicar este fenómeno na esperança, talvez em vão, de tornar compreensível para nós esta obsessão estranha por ter arsenais militares em casa e trazer pistolas no bolso para tudo quanto é lado.
Começa com a colonização da América. Para os colonizadores que se estabeleceram na região, a necessidade de se proteger contra nativos e animais selvagens era uma razão mais do que suficiente para justificar a posse constante de armas. Veio a Guerra da Independência, onde a necessidade de armas para proteger o país contra as tropas inglesas era evidente, e é nesse contexto que essa emenda foi incluída na “Bill of Rights” um conjunto de 10 emendas à Constituição que abordava os direitos individuais, que haviam sido negligenciados no documento original. Os Pais Fundadores estavam cientes de que o governo federal não tinha meios para garantir a segurança dos cidadãos contra ameaças internas e externas, dada a falta de recursos financeiros e organizacionais, e, para muitos deles, era inaceitável que essa fosse uma responsabilidade do Estado. Por isto, garantiram que uma milícia bem regulada era essencial para a jovem nação e, como resultado, os cidadãos não deveriam ser privados do direito de possuir armas. Naquela época, em que o governo federal não podia garantir a segurança dos cidadãos contra ameaças internas e externas devido à falta de recursos financeiros e organizacionais, essa medida fazia muito sentido.
Com o passar dos anos, a ameaça inglesa diminuiu, as Forças Armadas Federais fortaleceram-se, as forças de segurança expandiram-se, e os níveis de urbanização aumentaram significativamente. Com a vitória do governo central na Guerra Civil, Washington estabeleceu-se firmemente como o centro do poder e o sonho de um grupo de Estados com soberania compartilhada igualmente morreu, consolidando o monopólio do governo federal sobre o uso da força. A instituição da milícia, que demoraria a chegar ao Wild West, mas estava a caminho, estava fadada a desaparecer.
O século XX trouxe consigo a introdução de impostos federais e, após a Grande Depressão, uma presidência responsável por milhares de programas federais para regular e proteger a economia, o que fortaleceu o poder do Estado e conferiu-lhe novos poderes para controlar e proteger a vida dos cidadãos. Isso, juntamente com a onda de crimes que justificou medidas como a Lei Seca, fez com que a posse de armas fosse vista com naturalidade pelos cidadãos, a par da regulamentação de outras atividades, como a obtenção da carteira de motorista. De facto, nas primeiras décadas do século XX, a ideia de possuir armas para autodefesa era praticamente inexistente na maioria do país, com os entusiastas dessa ideia concentrando-se principalmente no seu uso para caça. Foi nesse contexto que a National Rifle Association (NRA) nasceu, inicialmente com o propósito de unir caçadores e outros entusiastas - e adotando, surpreendentemente, uma postura de controlo e regulação das armas de fogo.
Somente nos anos 70, quando o governo federal começou a perder credibilidade devido ao Watergate, à Guerra do Vietname e a uma intervenção estatal generalizada na economia, surgiram os primeiros movimentos que defendiam a flexibilização da posse de armas, usando a Segunda Emenda como argumento. Como estava consagrado na Constituição, esse direito incorporou-se rapidamente em movimentos políticos que viam as mudanças do século XX como uma traição aos ideais dos Pais Fundadores em relação ao papel do Estado.
Portanto, a posse de armas tornou-se um símbolo de resistência contra uma burocracia invasiva e uma nostalgia pelo momento glorioso em que os americanos conquistaram o continente. Isso encaixava-se perfeitamente na ideologia da Revolução Reagan e logo se popularizou a ideia de que esse direito constitucional, assim como a liberdade de expressão, deveria ser amplamente expandido. As administrações republicanas subsequentes nomearam juízes que deixaram de ver a Segunda Emenda como uma relíquia e começaram a permitir a compra de armas de fogo como se fossem roupa. Um marco na história deste tema é a decisão de 2008 no caso Heller v. District of Columbia, em que o Supremo Tribunal decidiu que o governo da capital (e, por extensão, qualquer governo) não poderia interferir no direito individual de possuir armas para autodefesa. Essa mudança na interpretação da Segunda Emenda, de um direito coletivo ligado à milícia do século XVIII para um direito individual, enfraqueceu muitas regulações estaduais e federais sobre armas de fogo.
No entanto, os danos já tinham sido feitos, uma vez que a NRA e o seu lobbying brutal passaram a considerar qualquer político que tentasse regular a compra de armas como inimigo. Essa mudança nos anos 80 agravou ainda mais a divisão entre os republicanos suburbanos e rurais, que dependiam do dinheiro da NRA e estavam profundamente ligados à causa das armas, e os democratas urbanos e liberais, que fizeram da restrição à posse de armas uma de suas bandeiras.
Essa divisão política dilacerou o país e contribuiu significativamente para a polarização política que levou à eleição de Trump. O extremismo das posições dos republicanos e as decisões judiciais que os apoiaram levaram a um aumento significativo na posse de armas nos Estados Unidos, o que, num mundo com metralhadoras e armas semi-automáticas, deu a indivíduos problemáticos um potencial destrutivo substancial. Não é coincidência que as mortes causadas por armas de fogo e os tiroteios em massa tenham aumentado drasticamente nas últimas quatro décadas, especialmente na última década.
Quando a NRA gasta milhões para impedir a proibição da compra de armas por pessoas em listas de observação de terrorismo ou pessoas proibidas de voar; quando muitos estados expandem os locais onde é permitido portar uma arma (incluindo escolas, estádios ou hospitais); quando pessoas com problemas mentais podem comprar armas de fogo em feiras de armas sem passar por qualquer teste, entre outras questões alarmantes, fica claro que a situação é complicada. Soluções de senso comum são frequentemente perdidas no debate degradado a que o Congresso se acostumou, e, como resultado, mais de 100 pessoas continuam a morrer a cada dia nos Estados Unidos devido a armas de fogo.
É inegável que há um problema, mas é importante perceber que esse problema surgiu recentemente e que, com esforço e vontade política, pode ser resolvido tão rapidamente quanto surgiu. Armas e violência não são instituições americanas, mas sim distorções históricas e fenômenos culturais contrários aos valores predominantes.