Cuba, o Estado falhado mais bem sucedido
Just how can a small, Caribbean island, underdeveloped by centuries of colonialism and imperialism, and subject to punitive, extraterritorial sanctions by the United States for 60 years, have so much to offer the world? Helen Yaffe (2020)
Há mais de 60 anos que Cuba é um país polémico e muito discutido, quer por políticos, quer por pessoas comuns que têm maneiras distintas de ver o mundo, daí resultarem visões diferentes sobre a pequena nação caribenha. No entanto, há uma narrativa que se mostra predominante sobre a outra, quase como hegemónica, e essa é a narrativa de que Cuba é um país falhado, que consequentemente é a prova de que o socialismo não é fazível e que experiências com o mesmo não são recomendadas. Porém, será que esta narrativa tem algum fundamento? Será apenas propaganda? Ou será algo entre os dois? Bem, é a isso que vou tentar responder ao apresentar a minha pesquisa e opinião sobre o assunto, da forma mais nuançada que conseguir.
Convém fazer um breve desvio para explicar a história de Cuba porque, não só podem haver leitores ignorantes desta, como também pelo motivo de o contexto histórico ser essencial em qualquer análise sobre um país.
Cuba era, até ao fim do século XIX, uma colónia espanhola, estatuto que vinha desde os descobrimentos ibéricos e da conquista espanhola da América, até à invasão estadunidense à ilha, no âmbito de reforçar a hegemonia americana no Continente. Desde aí que Cuba era uma neo-colónia dos EUA, com a sua economia e governo controlados, quer diretamente, quer através de proxies, de forma a alinharem-se aos interesses americanos.
Antes da revolução, nos anos 50, a ilha era um dos países mais ricos da região e era controlada pelo regime corrupto e não democrático de Fulgencio Batista. Apesar de ser um dos países mais ricos da região, estava em colapso económico, o que, aliado à gritante desigualdade, gerou um popular sentimento anti-governo, o que contribuiu para que este fosse derrubado pelos revolucionários comandados por Fidel Castro no primeiro dia do ano de 1959.
Após a implementação de medidas de coletivização, de industrialização e de nacionalização de negócios nacionais, como também dos controlados por estrangeiros, o novo governo revolucionário levou a suspeitas por parte do vizinho. Todavia, o que mudou as relações entre os EUA e Cuba, sendo os seus efeitos ainda sentidos hoje, foi o estabelecimento de contactos e de acordos comerciais com a URSS, a grande potência socialista antagónica aos EUA, levando estes a impor um embargo parcial à ilha revolucionária.
Outro acontecimento importante foi a tentativa de derrubar o governo revolucionário por parte de cubanos exilados na Flórida, com apoio dos EUA, em 1961. Isto marcou para sempre a ilha, porque, após a invasão falhada, Fidel declarou que Cuba era oficialmente um país socialista, intensificando contactos com a URSS e levando os EUA a apertar ainda mais o embargo. Daí resultou a famosa crise dos mísseis cubanos, em 1962.
Como já referi anteriormente, Cuba revolucionária tentou implementar medidas de diversificação económica que não foram bem-sucedidas, o que levou Cuba a ficar novamente dependente do açúcar e de um só país. Porém, agora, em vez de serem os EUA, era a União Soviética, em acordos benéficos para Cuba.
Cuba não teve sempre o mesmo modelo económico, tendo havido intensos debates internos no que toca a tal. No entanto, a ilha evitou crises que os outros países da região sofreram nos anos 70 e 80, como as crises petrolíferas, e nos anos 80 tinha um PIB per capita acima da média da região, bem como um IDH mais alto que a maioria dos seus vizinhos latinos. No que toca a outros indicadores, a revolução também levou a bons resultados. Cuba, antes da revolução, apesar de ter um dos melhores sistemas de saúde da América Latina, o mesmo era inacessível para a vasta maioria da população, quer economicamente, quer geograficamente. Com a Revolução, o acesso foi largamente expandido, mantendo a mesma qualidade. Além disso, em 1958, a expectativa média de vida de Cuba e Portugal era virtualmente iguais, sendo a de Cuba, em 1985, já era superior à portuguesa por mais de 1 ano.
Na educação, a Revolução também alcançou grandes feitos, como a campanha de literacia dos anos 60, que reduziu a iliteracia e tornou Cuba, em 1962, num dos países mais literados do mundo, com 96% de população alfabetizada. Outra conquista neste campo foi, também, o aumento drástico do número de crianças inscritas na escola, sendo 56% em 1953 e 88% em 1970. Para comparar, em Portugal, no ano de 1974, um quarto da população ainda era analfabeta.
Com isto não quero dizer que foi tudo perfeito e incrível, tendo havido repressão de opositores e também de homossexuais (apesar de Cuba ser, atualmente, campeã dos direitos LGBT+). No entanto, como todos sabemos, estes não foram os únicos percalços que a revolução enfrentou. Como já disse, Cuba foi embargada pelos EUA. Ainda assim, os efeitos do embargo foram mitigados pelos acordos comerciais favoráveis de que Cuba gozava com a URSS e com o Bloco Socialista. Mas, em 1989 e 1991, como toda a gente sabe, o Bloco Socialista desabou e com ele pensava-se que também Cuba abandonaria o ideal socialista. Apesar das grandes dificuldades, Cuba não caiu.
Realço, no entanto, que não se pode subestimar o efeito positivo que o acordo comercial com a URSS tinha na economia de Cuba (estima-se que, se este tivesse continuado, o PIB per capita de Cuba seria substancialmente maior nos dias de hoje). Com o seu fim, a economia colapsou. Como se o fim desse acordo não fosse mau o suficiente, o embargo americano foi reforçado através do Cuban Democracy Act (1992), o qual permitiu aos EUA sancionar terceiros que efetuassem trocas comerciais com Cuba. Com isto, a economia de Cuba e o seu povo sofreram bastante: o PIB decresceu 35% e houve uma descida de 80% em importações e exportações. Após este desastre, deram-se reformas de mercado, assim como a abertura ao turismo para combater a crise.
Apesar dos esforços, Cuba nunca mais foi a mesma, o IDH estagnou e a desigualdade aumentou. Não obstante, foram feitas melhorias em diversas áreas nas últimas décadas em importantes indicadores, como habitação, educação, saúde e igualdade de género. Cuba alcançou todos os MDGs (MIllennium Development Goals) e quase todos os SDGs (Sustainable Development Goals) da ONU, tendo sido um dos países mais bem-sucedidos no que toca a alcançar estes objectivos.
Hoje em dia, Cuba é também admirada pelo seu sistema de saúde altamente eficaz, universal e gratuito, que, devido às restrições comerciais do país, se foca essencialmente na prevenção. Este atinge indicadores comparáveis aos serviços de saúde de países mais ricos e desenvolvidos. Aliás, Cuba está mais bem posicionada que os EUA em alguns indicadores, nomeadamente na expectativa de vida, apesar dos EUA investirem proporcionalmente mais dinheiro na saúde, terem os melhores médicos do mundo e o equipamento mais avançado do planeta. Cuba também mantém um dos melhores ratios de mortalidade infantil e maternal do mundo, entre outras valorosas conquistas. Isto, devido ao facto dos serviços de saúde serem considerados direitos fundamentais em países socialistas. Como se isto não bastasse, Cuba ajuda medicamente 66 países internacionalmente.
Sobre a educação, Cuba tem um ensino gratuito e de qualidade, sendo dos melhores, se não o melhor, da América Latina. A ilha também apresenta uma literacia de 99% e, fazendo justiça ao seu internacionalismo, ensinou mais de 10 milhões de pessoas a ler em mais de 30 países, através do programa “Yes, I can”. O país caribenho também apresenta outros indicadores muito positivos, como ter apenas 1.9% de desemprego, 90% da população ter pelo menos uma casa e ser dos países com mais representação de mulheres no parlamento.
Ainda não abordei as duas maiores críticas que se fazem a Cuba: a questão da fome e a questão da democracia. A questão da fome está intrinsecamente ligada à crise que Cuba enfrentou nos anos 90, como já expliquei previamente. Contudo, a ideia da fome em Cuba persiste, ainda que esta não tenha qualquer fundamento, podendo afirmar, categoricamente, que, dos milhões de pessoas que morrem à fome no mundo, nenhuma delas morre em Cuba. Citando o World Food Program: “Over the last 50 years, comprehensive social protection programmes have largely eradicated poverty and hunger. Food-based social safety nets include a monthly food basket for the entire population, school feeding programmes, and mother-and-child health care programmes. Although effective, these programmes mostly rely on food imports and strain the national budget”. Isto, no entanto, não quer dizer que não existam problemas, havendo, em Cuba, uma alta percentagem de crianças a sofrer de anemia, devido à dieta cubana ser pobre em vegetais e micronutrientes, estando o governo a trabalhar para resolver este grave problema, de acordo com o WFP. É também de notar que Cuba, apesar de ter uma agricultura eficiente (por necessidade de combater o embargo), baseada em cooperativas (agricultura participatória) e policulturas, continua a sofrer da utilização de tecnologia obsoleta (também devido ao embargo) e de desastres naturais recorrentes (apesar dos grandes avanços de Cuba relativamente à mitigação climática). Apesar destes problemas, reitero que Cuba não passa fome, essa ideia não passa de um meme proveniente da crise que Cuba passou à décadas. Na verdade, o consumo calórico diário em Cuba é igual ao de Espanha (3334 por dia) de acordo com o Our World in Data.
Por último, falta abordar o “problema democrático”. Apesar de Cuba não ser uma democracia liberal, isso não faz de Cuba um país não-democrático. Nada obstante, a questão de Cuba ser democrática, ou não, é altamente discutível, havendo quem diga que esta é mais participativa que muitas democracias liberais (evidenciando a Constituição de 2022 e a larga participação que esta teve na sua elaboração) e quem diga que esta não é democrática por apenas permitir um partido. Eu não participarei nesta polémica devido a esta não contribuir para chegar ao objectivo a que me propus, aquele de averiguar se Cuba é um estado falhado ou não.
Para concluir, falta responder à questão inicial, a de se Cuba é, ou não, um estado falhado. Eu penso que não necessito de responder à questão, os leitores provavelmente já terão chegado a uma conclusão por este andar, seja ela qual for. No entanto, para tornar claro, penso que, se Cuba for um Estado falhado, então é, como o título indica, o Estado falhado mais bem-sucedido. Apesar de tolerar outras opiniões, não as respeito por achar que é uma falta de honestidade intelectual. Com isto, não quero dizer que não respeito quem não goste do regime cubano, nem do seu sistema político, esse é um assunto completamente diferente. Porém, não aprovar um sistema político não faz dele um país falhado, porque, pela mesma lógica, alguém que desgostasse do sistema político da Inglaterra poderia afirmar igualmente que este se tratava de um país falhado, o que não faria sentido algum. A mesma lógica se aplica a Cuba que, apesar de não ser um país desenvolvido e muito menos uma utopia, é um país relativamente desenvolvido comparativamente aos seus vizinhos latinos, apresentando indicadores sociais surpreendentemente bons, os quais conseguiu atingir (e melhorar nas últimas décadas) com a vida bastante dificultada pelo o embargo (condenado pela vasta maioria da comunidade internacional) e sem ajuda do Ocidente.