Qual o futuro da Diplomacia?
É natural no ser humano pensar como será o futuro, fazemo-lo quando somos crianças, quando imaginamos ser crescidos, depois quando somos adolescentes e começamos a pensar na nossa vida adulta, e por aí adiante. É significado de progresso e de crescimento cogitamos sobre o futuro, fazermos planos a longo prazo, termos um objetivo que não se cumpre no aqui e no agora. Ao pensar no futuro, é inevitavelmente pensar em mudança «Todo o mundo é composto de mudança/Tomando sempre, tomando sempre/Novas qualidades» como cantou José Mário Branco, o poema de Camões. Tal como o mundo vive em constante mutação, também a realidade em que vivemos está em permanente variação. Tal como a realidade humana está em constante mudança e evolução, também com ela evolui a diplomacia, como resultado principalmente das mudanças das características do sistema internacional e das alterações internas de cada ator internacional.
A diplomacia é uma arte. A arte do instrumento mais pacífico da política externa. Aquele que permite a comunicação e a negociação entre os estados através do diálogo entre interlocutores mutuamente reconhecidos. É, contudo, impossível falar em termos conclusivos sobre como será a diplomacia do futuro, pois ela é reflexo e resposta das circunstâncias da altura. O exercício que me proponho explorar, de imaginar e arquitetar como será a diplomacia do futuro, é por isso, quase impossível. Podemos sim pensar e refletir sobre a diplomacia do presente e mesmo isso de certa maneira já é ousado. Ler o contexto atual já é um exercício em si muito complexo, pensar no futuro ainda é um exercício mais difícil.
Onde viemos parar
Estamos a lutar não só pela nossa independência, mas sim pela nossa sobrevivência. Para que os ucranianos não sejam mortos, humilhados, torturados, capturados pela Rússia. - Discurso de Zelensky na Assembleia da República Portuguesa
Se regressarmos uns anos atrás notamos que na agenda internacional os assuntos principais eram: a relação dos Estados Unidos com a China e o seu impacto geopolítico; as várias dimensões das implicações da pandemia; e a gravidade da ameaça existencial (climática) que assombra o nosso planeta. Estes eram os assuntos mais abordados, questionados, que causavam preocupação a todos os diplomatas e a todos nós cidadãos do mundo. Até que chegou Fevereiro de 2022, o conflito na Ucrânia. Tudo mudou. A nossa visão de todas as outras contingências no sistema internacional passavam agora a estar influenciadas por este evento “inesperado”. As prioridades que antes marcavam a atualidade não desapareceram, mas tornou-se impossível olhar para essas prioridades sem o prisma do conflito geopolítico que irrompera na Ucrânia. Este foi o “black swan” como nos ensinou Karl Popper, o acontecimento inesperado. O acontecimento inesperado é sempre crucial para uma possível leitura da atualidade. Esta é também a dificuldade de constituir uma previsão do futuro, porque há sempre este elemento do inesperado, do que nos surpreende, daquilo que ninguém espera e por isso é praticamente impossível de prever. No caso da guerra que deflagrou na Ucrânia o ocidente foi claramente surpreendido, mas isso talvez revelou falta de conhecimento sobre o outro lado da mesa, o lado russo. A intensidade das palavras de Zelensky mostram que a Ucrânia tem um caminho claro e evidente que quer seguir: a dupla adesão à União Europeia e à Nato. Talvez assim consigam manter, por mais tempo a sua independência e a segurança dos seus cidadãos…mas enquanto a guerra persistir, esta dupla adesão terá de esperar. Os EUA deixaram de ser o único modelo como Fukuyama antecipava, a vitória clara das democracias liberais. A China veio provar ser uma potência concorrente. Assim a Rússia sentiu que podia agir mais livremente e que pode retomar a sua “área de influência” soviética. Como encontramos o quadro das relações internacionais? Após a bipolaridade da Guerra Fria e a unipolaridade americana que lhe seguiu, passamos a ter algo como um sistema anárquico global. Deixamos de ter uma única ordem global, passando sim a uma ordem global múltipla, tanto nos temas como nos atores e intervenientes. Quais as grandes tendências que marcam a realidade do nosso mundo, quais são os principais desafios que assim se colocam à atividade diplomática?
Os múltiplos desafios à diplomacia
The international system consists not only of states. The international political system is the pattern of relationships among the states. - Joseph Nye
Quase todos os estados estão em relação permanente com os outros. Essa relação tem-se tornado mais alargada, abrangendo mais áreas, tornando os países mais interdependentes uns dos outros. As sociedades e economias estão cada vez mais interconectadas e interligadas. As sensibilidades e vulnerabilidade entre os países têm tornado a manipulação de assimetrias (recursos energéticos, bens alimentares, entre outros), verdadeiras armas políticas. Os efeitos económicos da guerra na Ucrânia, têm-se feito sentir em todo o continente europeu e um pouco por todo o mundo. Outro dos exemplos mais paradigmáticos da permanente ligação e dependência entre as atuais sociedades modernas foi a crise pandémica, onde um pequeno vírus se espalhou em poucas semanas pelo globo e afetou a todos, sem exceção. Talvez sirva para percebermos que estamos cada vez mais, todos no mesmo barco. Deparei-me recentemente, a ler as recentes discussões políticas que ocorreram na Argentina e não pude deixar de ficar incomodado e preocupado. Isto é sinal desta interconexão, esse instinto de preocupação com o que é aparentemente longínquo é um instinto correto, porque apesar de ser noutro país, as implicações fazem-se sentir no nosso país também. “A tecnologia move o mundo” — Steve Jobs A tecnologia move o mundo, mas na verdade tem feito algo ainda mais espetacular, tem nos permitido mover o mundo…sem fisicamente nos termos de mover. Atualmente podemos chegar ao outro lado do planeta em breve segundo e podemos imprimir nesse lugar longínquo uma marca, mesmo não estando fisicamente lá. Vivemos uma verdadeira revolução tecnológica e digital, cuja aceleração parece imprimir no mundo dinâmicas novas, que trazem novas responsabilidades, deveres e perigos. Em 2020 o mundo tinha 7.7 mil milhões de habitantes, e destes, 5.5 mil milhões usavam regularmente um telemóvel, 4,6 mil milhões recorriam à internet, 4,1 mil milhões tinha uma qualquer presença nas redes sociais. Estima-se que em 2025 75% da população mundial “tenha uma pegada digital forte”. É caso para dizer que o próprio conceito de privacidade está a ser posto em causa. What happens in Vegas…no longer stays in Vegas. Vivemos no mundo do 5G e no ano por alguns denominado como o “ano da Inteligência artificial”. As implicações políticas são claras, basta ler o efeito de um tweet de um qualquer chefe de estado, ou um vídeo de campanha completamente feito por IA, como foi o caso com Biden. A evolução tecnológica está a pôr em causa a transparência necessária nas relações diplomáticas democráticas. Tem-se tornado crescentemente difícil diferenciar aquilo que é verdade e o que foi inventado com a utilização de Inteligência Artificial. A verdade pode muito bem não o ser e ninguém perceber…isto é um perigo grande. Surge, por isso, uma grande desconfiança. Dos governos às indústrias, passando pelas empresas até ao simples consumidor, não há nada nem ninguém que se possa dar ao luxo de ficar de fora da transição digital. É a revolução em marcha que, acelerada pela pandemia, está a transformar a mobilidade, o consumo, o trabalho ou o entretenimento a uma velocidade vertiginosa.
A demografia do mundo
A China foi destronada como o país mais populoso do mundo. Vive agora um inverno demográfico. A China teve uma queda de cerca de 900 mil pessoas, queda essa que marca para os especialistas, o início de um declínio populacional no país. Em abril de 2023, a Índia ultrapassou o gigante asiático e tornou-se na nação com a maior população do mundo, de acordo com as Nações Unidas. O inverno demográfico chinês pode vir a ter consequências globais que ainda temos de conhecer. A Europa, o “velho continente”, vive num inverno demográfico à algum tempo e as perspetivas recentes não são animadoras. Ao contrário da tendência chinesa e europeia, na generalidade do continente africano a população cresce a ritmos altos. A África Subsariana é a região do mundo que começou mais tarde e avançou de maneira mais lenta na transição demográfica. Segundo o demógrafo, holandês-americano, John Bongaarts, a transição demográfica subsariana ocorre de maneira tardia em ritmo mais lento e teve início num limiar de desenvolvimento mais baixo e com um nível de fecundidade mais elevado do que em outras regiões do mundo. As projeções apontam para que a África Subsariana conte com ¼ da população mundial em 2050, metade da qual com idades até aos 26. “Chega de maltratar a biodiversidade. Chega de nos matarmos com o carbono. Chega de tratar a natureza como lixo. Basta de queimar, perfurar e minar cada vez em maior profundidade. Estamos a cavar a nossa própria cova.” — António Guterres O ponto anterior deve ser entendido como uma realidade crucial de notar, mas deve ser visto conjuntamente com o limiar das alterações climáticas e daquilo a que chamamos aquecimento global. Dos 20 anos mais quentes, 19 ocorreram desde 2000, assustador certamente. Somente em 2022, os desastres climáticos causaram quase 32 milhões de deslocamentos internos (dentro do mesmo país, devido a fatores climáticos) em todo o mundo, de acordo com um relatório do Centro Internacional de Monitoramento de Deslocamentos. Este número é maior do que as deslocações migratórias devido a conflitos militares. As secas e o avanço da desertificação, a falta de colheitas, as chuvas torrenciais, a alteração das estações e as temperaturas extremas são apenas alguns dos motivos que desencadeiam esse tipo de migração. A desflorestação, a emissão de gases de efeito estufa e a poluição de águas, conjuntamente com desastres naturais têm condicionado o mundo em que vivemos e empurrado as populações dos países africanos sobretudo para uma migração externa para norte, para a Europa. Estima-se que as migrações climáticas sejam cerca de 200 milhões no ano de 2050 segundo um relatório do Banco Mundial. Este tema cria-nos questões essenciais na definição de objetivos para o futuro: Onde ficaram todas estas pessoas? Qual a resposta diplomática para esta questão? Como fazer frente a estes fluxos migratórios e como combater estas realidades? Tudo questões sobre as quais a diplomacia se deve debruçar e refletir.
A raiva é o produto do medo
A sociedade civil tem-se tornado mais vocal, mostrando o seu desagrado de forma muitas vezes radical e desajustada à injustiça que clamam. E esta raiva vem da incerteza do futuro, de tempos de crise. Estamos, a meu ver, num período mais perigoso e imprevisível do que no momento da queda do muro de Berlim. Sabemos que vivemos num mundo mais imprevisível e mais perigoso. A sociedade civil faz-se ouvir bem alto, sejam as classes trabalhadoras em Portugal, sejam as manifestações que têm assolado França, as manifestações por direitos no médio oriente, as manifestações de cariz político em África, até à invasão do Capitólio em Washington e a invasão do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal no Brasil, ou o movimento “Black Lives Matter” entre outros. Parece que estamos a viver tempos conturbados e muita agitação social, essa agitação deve-se ao medo e à incerteza de tempos que não se avizinham animadores. A reconfiguração dos equilíbrios de poder O sistema internacional é agora multipolar nos seus principais atores. Os seus principais atores, sendo os Estados Unidos, a China, a União Europeia e de certa forma a Rússia. Outros atores como Índia, restantes BRICS, Ásia e América Latina são atores fundamentais, mas na minha convicção pessoal, mesmo o seu papel resulta da equação que envolve os principais quatro atores. Os EUA, perderam a sua evidente unipolaridade no pós-guerra fria. A realidade interna do país tem sido posta em causa. Existe uma estreitíssima ligação entre a realidade interna e externa de um país. Um país quando se afirma na frente externa, fá-lo sempre em reflexo do que a sua realidade interna e isto é ainda mais verdade para democracias abertas como Portugal ou os Estados Unidos. Que EUA vamos nós ter? Neste momento temos a administração Biden, e depois? Que posição vão ter os EUA depois? Perguntas legítimas, às quais não existem respostas. Apesar de não haver resposta, o mundo reage à dúvida, não espanta que cada vez mais se oiça na UE o discurso da autonomia estratégica. Que grau de confiança podemos nós, Europa, ter no relacionamento com os EUA? Numa sondagem feita, a maioria dos americanos apoiará o envio de uma marinha americana para impedir o bloqueio de Taiwan. É uma atitude que reflete o que tem sido uma das maiores alterações na equação geoestratégica do pós-Guerra fria: A ascensão da China como poder regional mas com ambições globais e a forma como se relaciona e é encarada pelo pólo contrário, os EUA. Os americanos olham para a relação com a China, como uma relação existencial, aí sim há um consenso.
Os americanos sentem-se enganados em relação à China, tendo apostado numa abertura em relação à China, com a convicção de que daí iria resultar uma China democrática, mas não foi isso que aconteceu. Há um sentimento de desgosto e quase traição para com os chineses, que se tornou um forte opositor à democracia liberal. Para compreendermos a importância que os EUA atribuem à China basta olhar para a orgânica do State department. Foi criada a China House (uma coisa vastíssima que cobre as mais variadas áreas) … isto diz bem da importância que os EUA atribuem à relação e interação com a China. A China está perto de se tornar a maior economia global e de ocupar um lugar cimeiro na investigação e desenvolvimento das tecnologias do futuro. A China detém 37 das 44 tecnologias, consideradas as tecnologias críticas e emergentes, neste momento em domínios do espaço, robótica, energia, ambiente, biotecnologia, IA, tecnologia quântica, etc.) Em alguns desses campos 10 das mais importantes instituições de pesquisa estão na China. Tem um domínio esmagador nas fileiras industriais envolvidas na transição energética. A China é responsável por quase 80% da produção mundial de baterias, 78% dos painéis solares fotovoltaicos, 70% dos moinhos de vento de energia eólica, 40 % da produção de bombas de calor, 66% da mineração de cobalto. Contudo, este continua a ser o país que não tem assento no G7. O consenso de Pequim tem começado a rivalizar com o consenso de Washington.
Qual a relação futura com os EUA? Taiwan. A China quer anexar Taiwan. Mas a China sabe que tem de tratar desse assunto com extrema cautela e prudência. Tem estado a crescer em Taiwan o movimento independentista, o que é completamente inaceitável para a China. A União da mãe pátria China não pode ser posta em causa. O que sucederá em Taiwan vai ter implicações a nível global para todo o cenário geoestratégico. A forma como a China olha para tudo isto é determinante para a forma como a China olha para a Rússia e para tudo o que se está a passar na Ucrânia. Esta Rússia, a China não a quer demasiadamente forte, mas também não a quer demasiadamente fraca e não lhe interessa uma instabilidade permanente. A guerra da Ucrânia é fundamental para a Rússia e para a nossa avaliação de qual será o papel e o peso da Rússia em futuros xadrezes internacionais. A Rússia como antiga potência mundial, tenta através de uma guerra voltar a sê-lo. Existiu uma falta de convicção e de dados, que fez com que o ocidente acreditasse que a Rússia invadir a Ucrânia não tinha sentido…mas de facto, para a Rússia, a situação era ideal. No dia 24 de fevereiro aconteceu o “inesperado”. Sabemos que em relação ao futuro, uma contraofensiva é a maneira como Zelensky vê de conseguir uma negociação melhor, mas não no atual palco. O grande objetivo estratégico da Ucrânia será tomar os portos do mar de Azov e cortar a ligação da Crimeia à Rússia. A ideia é de no fim disto tudo termos negociações. O que irá depois suceder com a Rússia, será que recorrem ao armamento nuclear? O que terá em mente Putin? A União Europeia tem o desafio de uma guerra à porta, o desafio do relacionamento com os EUA, da afirmação da sua autonomia estratégica e os desafios da transição energética e da transição digital, com tudo o que isto acarreta de impacto social e económico. A Presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, definiu que o alargamento “é o melhor investimento na paz, segurança e prosperidade da União” e que “apoiando a Ucrânia, enfrentando a agressão da Rússia, respondendo à assertividade da China e investindo em parcerias” com aliados antigos e novos. Como será esta União no futuro? Terá de desenvolver hard power? Conseguirá continuar a sua construção admitindo novos países a leste, na Turquia e nos Balcãs?
Como é que isto tudo se traduz na atividade diplomática do futuro?
No sistema diplomático vão existir novos atores com os quais os diplomatas vão ter de lidar, não só estados mas uma multiplicidade de outros atores, mas sobretudo novos temas e desafios. A nova relação de forças marcada pela competição entre dois modelos de sociedade com posições hegemônicas, mas a grande dificuldade que será como resolver problemas cada vez mais globais, num quadro de crise evidente no multilateralismo. Como resolver problemas globais quando o multilateralismo está enfraquecido? Como podemos recuperar o multilateralismo? As alterações climáticas irão ter maiores efeitos sociais e políticos, sendo que as previsões apontam para que as terras áridas em África aumentem 8%, as pessoas vão se movimentar e vamos ter de lidar com isso. A revolução tecnológica e digital aparenta ser a maior revolução a que vamos assistir no nosso mundo, vai colocar em causa conceitos básicos como o humano e o que é ser humano. Como será a relação entre as pessoas na era digital? A combinação de “pessimism of the mind and optimism of the will” parece ser o estado de espírito que a nova geração de diplomatas necessita para usar a arte diplomática em busca da paz entre os povos. Dentro do dramatismo e pouca veracidade atrás da série The Diplomat emergiu uma verdade quando o marido de Kate Wyler, Hal, refere num discurso que “Diplomacy does not work; diplomacy does not work! Diplomacy does not work!… until it does.” Esperamos que ela continue a não funcionar…e talvez no fim…