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Fotografia: UCP

Na sua ótica, quais foram os fatores determinantes para a falência do Estado Novo?

O fator determinante para a queda do regime do Estado Novo foi, sem dúvida, o arrastar da guerra de África. Mesmo que o número total de baixas não tenha sido muito elevado, a fatura económica, o peso mental asfixiante e a impopularidade internacional da “causa do Ultramar” levaram à crença de que a solução para a questão africana teria de passar pela inevitável queda do Estado Novo. Foi esta a primeiríssima motivação do 25 de Abril.

Sabendo que era muito novo no 25 de Abril e não lhe podendo perguntar onde estava neste dia - quais são as histórias que lhe contaram sobre este dia?

Eu nasci em Junho de 1970, por isso não tinha ainda 4 anos aquando do 25 de Abril. Recordo-me muito vagamente de não ter ido à escola nesse dia, mas mais nada. Em casa, num meio familiar democrata, mas sem radicalismos, aprendi depois que a data fora um marco positivo na nossa história.

A primavera marcelista trouxe um projeto político e uma ambição reformista dentro do regime salazarista. Em que é que consistia e porque é que falhou?

O marcelismo foi um curto período, entre 1968 e 1974, hoje objeto de muito debate historiográfico, em torno das verdadeiras intenções de Marcelo Caetano e do que ele não pôde, não quis ou não soube enfrentar, equacionar, resolver… Caetano era um homem do regime, mesmo considerando o seu “exílio” interno a partir de 1958, quando Salazar o afastou do governo. Por isso não era um liberal; mas também é certo que o seu consulado foi mais do que um “salazarismo sem Salazar”. Se pensarmos no lema que ele cunhou para a sua governação – “renovação na continuidade” – percebe-se ao mesmo tempo o que foi a Primavera Marcelista…e porque é que ela tinha limites insuperáveis. O marcelismo vinha para aprofundar a modernização económica de Portugal, ensaiando reformas que suavizassem a política do Estado Novo (houve uma abertura inicial, com redução da repressão e da censura), mas sem nunca colocar em causa a integridade e a sobrevivência do regime que herdara. O problema estava exatamente na contradição subjacente a isto. Continuar o regime, mesmo com progressiva abertura política, implicava manter o esforço de guerra; todavia, ao fazê-lo, a modernização económica e social e mesmo uma outra inserção de Portugal na Europa e no mundo estavam ameaçadas. Foi este o drama do marcelismo, o beco-sem-saída que o tempo depressa revelou. E, por isso, da Primavera inicial, em que se tentou “liberalizar” mantendo a guerra, passou-se ao Outono marcelista (a partir de 1970-71), em que a perpetuação da guerra liquidou toda a margem de manobra de Caetano.

O que foi o Movimento dos Capitães e como se transformou no Movimento das Forças Armadas? Esta expansão foi de natureza organizacional ou programática?

O Movimento das Forças Armadas tem uma origem e um desenvolvimento ainda envoltos em alguma bruma. O arrastar da guerra colonial, que começara por ter baixa intensidade militar e alargado apoio patriótico na metrópole (sob Salazar), agravou-se (sobretudo na Guiné e em Angola) no final dos anos 60. Os que eram recrutados faziam uma ou duas comissões de serviço, longas e desgastantes, e viam as suas vidas, pessoais, universitárias, familiares e profissionais, interrompidas ou adiadas. O mal-estar era evidente. Do que se sabe, em Dezembro de 1973, estes ressentimentos generalizados, que provinham de uma sensação cada vez mais arreigada de que a guerra não tinha solução militar, mas política, somaram-se a outros, de cariz corporativo (progressão na carreira e rivalidade das fileiras face aos milicianos). Numa reunião, em Óbidos, cerca de 300 oficiais intermédios – quase todos capitães, que era a patente mais sacrificada em África – criaram o «Movimento das Forças Armadas». Esta tomada de posição corporativa e contra a guerra foi depressa infiltrada pelas organizações políticas que se moviam contra o marcelismo, pela crença de que qualquer golpe contra Marcelo Caetano precisava de ter “a tropa” consigo… e como agente executante. Em Fevereiro de 1974, a publicação do livro Portugal e o Futuro, do general António de Spínola, foi uma espécie de “luz-verde” dada ao MFA para avançar. Fizeram-no em Março, no abortado golpe das Caldas da Rainha, e com sucesso, marchando sobre Lisboa, a 25 de Abril.

O 25 de Abril de 1974 foi aquilo a que na terminologia político-militar se chama um “pronunciamento”. A história portuguesa é muito fértil neles, desde o século XIX: tanto a revolução liberal de 1820, como a regeneração saldanhista de 1851, o 5 de Outubro de 1910 ou o 28 de Maio de 1926, foram “pronunciamentos” militares. Ou seja: é a tropa que deita abaixo regimes bloqueados e que, depois, entrega o poder aos civis saindo de cena (“aquartelando-se”, como se diz…). E o regime de Marcelo Caetano estava tão fragilizado que bastou um punhado de unidades sublevadas, que tomaram pontos chave da capital, para desmoralizarem toda e qualquer hipótese de defesa (que, de resto, nem sequer saiu à rua para o contragolpe), levando à rendição de Caetano, depois do cerco ao Quartel do Carmo pelo jovem capitão Salgueiro Maia, o “homem-de-mão” do comandante do golpe, o major Otelo Saraiva de Carvalho. Também como foi padrão histórico português desde o século XIX, o “povo” começou por ser espetador curioso do aparato militar com que Lisboa acordou naquele dia, para logo aderir, entusiástica e caoticamente, ao golpe, que assim começou depressa a ganhar um cunho de revolução. As melhores imagens de Abril são a da confraternização, enfeitada com cravos vermelhos, de populares e soldados; os populares ali estavam para se solidarizarem com o “serviço” feito pela tropa, por que muitos, tantos, dos portugueses já ansiavam: derrubar o vetusto Estado Novo e, com isso, criar as condições para encerrar a guerra colonial e instituir a democracia.

Em que aspetos da vida quotidiana se nota uma radical diferença entre o pré- e pós-revolução?

É possível responder de duas maneiras diferentes à vossa pergunta. A primeira resposta parte de uma leitura macroeconómica e sociológica de longa duração: Portugal já estava a sofrer uma grande transformação, criada pelos impulsos e oportunidades do segundo salazarismo e dos anos 60 (a industrialização, a terciarização, a abertura através da EFTA, a reorientação comercial, económica, mental até, da África para a Europa) – e o 25 de Abril e a democracia aceleraram tudo isto, num quadro democrático, culminando na adesão à CEE, em 1985. Ou seja (e isto é polémico): o 25 de Abril apenas “deu” a democracia a um país que já estava irreconhecível face às gerações anteriores. E há uma segunda resposta: a que afirma que, sem o 25 de Abril, aquela transformação teria ficado sempre incompleta e seria sempre limitada, e que, mesmo com todos os excessos da revolução (já lá iremos), foi o período de 1974-76 aquele que mais mudou o país. É na vida quotidiana que esta segunda resposta, ou interpretação, encontra mais razão de ser, porque, dito de forma muito simples, os portugueses não tinham, e passaram a ter, liberdade – liberdade de pensamento, de expressão, de associação, de ação, de vida, de costumes, etc. É verdade que a exageração da liberdade levou a formas de conflito e de “censuras” revolucionárias durante o PREC. Mas isso não diminui o alcance daquela simples conquista iniciática. E, para um exemplo concreto do “antes” e do “depois”, vale a pena olhar para a condição feminina, que se alterou radicalmente para melhor depois de 1974.

Um dos momentos descritos como mais quentes nos pós 25 de abril é o PREC, exatamente como o Professor o descreveria?

O PREC (“Período Revolucionário em Curso”) não é um momento; é (foi) um processo de deriva radical esquerdista, que criou uma profunda clivagem na sociedade portuguesa entre 1974-76, com particular realce para o chamado “verão quente” de 1975. O golpe militar, como acima referi, tornou-se depressa uma avalanche revolucionária, e não só em torno da questão da descolonização, mas por causa de muitas outras questões abertas pela promessa democrática, o país dividiu-se num ruidoso conflito que atravessou a sociedade portuguesa. Muito esquematicamente, de um lado esteve o PS, de Mário Soares, o PPD-PSD, de Sá Carneiro, e o CDS, de Freitas do Amaral e, do outro lado, o PCP, de Álvaro Cunhal (e as demais extremas-esquerdas), o COPCON (a ala radical do MFA), e o mais importante primeiro-ministro dos governos provisórios, Vasco Gonçalves. Quase tudo separava estes dois blocos, e eles confrontaram-se por todas as vias: era a democracia pluralista contra o comunismo, o mercado livre contra a economia estatizada, a liberdade de expressão contra o monolitismo “antifascista”, o alinhamento pró-ocidental europeu contra a preferência pelos supostos “não alinhados” (na verdade satélites da URSS). E foi esta clivagem que, ao fim ao cabo, norteou cada uma das datas chave do PREC: o 28 de Setembro de 1974 (a demissão de Spínola), o 11 de Março de 1975 (a radicalização à esquerda, com o início das nacionalizações), ou o 25 de Novembro de 1975 (quando um contragolpe dos moderados recentrou o processo político, abrindo a porta à aprovação da Constituição, em Abril de 1976).

Como é que se deu a integração das elites do Estado Novo nas novas elites da democracia?

Neste aspeto, o caso português estabelece talvez um contraste com o caso espanhol, da passagem do franquismo para a democracia. Em Espanha, isso foi feito sem revolução, através de uma “transición”, que amorteceu a passagem e que permitiu que muita da elite do franquismo se transmutasse na direita espanhola das últimas décadas. Em Portugal, o corte – e a dinâmica do PREC – foi muito maior, o que se notou, por exemplo, nos saneamentos no aparelho do Estado, nas Universidades, nas empresas, etc. Isto significa que o Estado Novo não teve herdeiros ou continuadores, e não deixou (ainda bem) nostálgicos ou saudosistas que reivindiquem o seu legado. Isto dito, e porque também somos um país de brandos costumes, pequeno, onde toda a gente se conhece, é claro que houve muitas passagens de um regime para o outro, ao nível do anónimo funcionário público ou do influente local. Superada a “vertigem” revolucionária inicial, muitas pessoas refizeram a vida e as filiações políticas. Os altos dignitários do salazarismo e do marcelismo passaram, alguns, pelo exílio, mas regressaram e com casos de renovado relevo. Antigos ministros tornaram-se académicos ou altos quadros da vida política democrática: vejam-se os casos de Franco Nogueira ou de Veiga Simão. E muitos dos antigos nomes das chamadas “forças vivas” (os grandes capitães da indústria, da banca ou dos serviços) regressaram depois de um hiato, ou mesmo sem esse hiato: vejam-se os casos dos Espírito Santo, de Champalimaud ou da família Mello (da antiga CUF). Creio que foi no seu discurso do 25 de Abril do ano passado que o nosso Presidente da República explorou esta questão, sublinhando como ele mesmo, sendo filho de um antigo ministro do marcelismo (Baltasar Rebelo de Sousa), pôde chegar à mais alta magistratura do atual regime democrático!

Quais as conclusões mais interessantes que se retiram do estudo deste período?

O 25 de Abril de 1974 e o PREC, até 1976, foram o momento iniciático da atual democracia portuguesa. Entre aspetos positivos e negativos, o balanço tem de ser francamente positivo. E o seu conhecimento e estudo, sobretudo por parte das gerações mais novas, é fundamental para que possam (possamos todos) refletir criticamente sobre os caminhos do nosso presente.

Por fim, entre as várias artes (música/pintura/escultura/teatro/literatura/filme (cinema)/fotografia/banda desenhada), escolha uma a que associe (ou defina) o 25 de Abril.

Recorro à literatura e à imagem para eleger duas representações do “espírito” de Abril. A literatura (mais concretamente a poesia) deixou-nos os imortais versos com que Sophia de Mello Breyner celebrou o derrube do Estado Novo:

Esta é a madrugada que eu esperava

O dia inicial inteiro e limpo

Onde emergimos da noite e do silêncio

E livres habitamos a substância do tempo.

O menino do cravo, famoso cartaz do período do 25 de Abril. Fotografia: Sérgio Guimarães

De entre os milhares de imagens de Abril, escolho o muito icónico poster do rapazinho dos caracóis loiros segurando uma espingarda decorada com um cravo. Não é um instantâneo real, no sentido em que o gesto foi preparado para a fotografia; mas o conjunto entrou no nosso imaginário – pelo menos no da minha geração. E para empregar a linguagem da vossa geração, é uma imagem que, se o 25 de Abril acontecesse hoje, rapidamente se tornaria “viral”!